Em
seu Quadro da Vida Humana, Cebes, que nasceu em Tebas, cidade da Beócia, no
Século V a. C., descreve-nos um vasto recinto onde vivem seus habitantes. Uma
multidão de candidatos à vida aglomera-se à porta. Um gênio, representado por
um venerável ancião, dirige aos candidatos atilados conselhos. Infelizmente,
suas sábias advertências sobre a conduta que se deve observar perante a vida
são de pronto esquecidas pelas almas ávidas por viver.
Tão
logo entram no fatal recinto, sentem-se obrigadas a desfilar diante do trono da
Impostura, mulher cujo semblante é de uma expressão convencional e que tem
maneiras insinuantes. Ela apresenta-lhes um copo. Não se pode entrar sem beber
pouco ou muito. Para viver intensamente, muitos bebem a grandes sorvos do erro
e da ignorância; outros, mais prudentes, apenas provam a mágica beberagem e, em
consequência, esquecem menos os conselhos recebidos e não sentem tanto apego à
vida.
Do
mesmo modo, um cálice será apresentado ao neófito, quando ingressar na nova
vida de Iniciado. O aspirante que acaba de sofrer a prova do fogo refrigera-se
com esta água pura e refrescante. Mas, enquanto bebe a grandes goles, a doce
bebida torna-se amarga. Quisera então rechaçar o cálice, mas se lhe ordena que
beba até as fezes. Obedece dócil e decidido a suportar a carga de sofrimento
que o aguarda. Bebe, mas, – oh! Milagre! – a fatídica beberagem volta ao seu
primitivo sabor!
Este
rito nos inicia no grande mistério da vida que nos brinda com suas doçuras, mas
que quer que saibamos aceitar também seus rigores e crueldades.
Quando
aceitamos a vida, nossa tendência é de provar tão só o agradável e desejamos a
felicidade como se pudéssemos consegui-la gratuitamente sem havê-la merecido.
Isso é desconhecer em absoluto a Lei do Trabalho que vale, necessariamente,
para toda a vida. Viver é, em suma, cumprir uma função e, portanto, trabalhar.
A Vida é a tal ponto inseparável do trabalho e do esforço, que não se a pode
conceber na inércia. Nossa existência é ação. Descansamos para repor as forças,
a fim de poder prosseguir com nossas atividades. Quem deixa de obrar renuncia à
existência: o descanso definitivo esteriliza e equivale à anulação, à
morte!
Para
dizer a verdade, é possível, – valendo-se de artifícios, – fugir a toda pena e
obrar de maneira que só nos proporcione satisfações. Mas essa tática não produz
mais que engano, e a vida sabe vingar-se daqueles que não querem acatar suas
leis. Quando menos, o fastio de viver será sua herança.
Para
o Iniciado, impõe-se tanto mais a honra de viver, quanto mais ambicione possuir
os segredos que são, precisamente, os da própria vida. A Iniciação ensina a
viver uma vida superior, ou seja, em perfeita harmonia com a Grande Vida.
Compreender bem a vida: eis aqui o objetivo de todo aspirante à sabedoria. Que
nos importam os segredos da morte? Em seu devido tempo, ser-nos-ão revelados, e
não há por que se preocupar com eles. Em troca, devemos viver, e viver de
acordo com as exigências da vida.
Estas
exigências da vida poderão parecer tirânicas ao profano que não tenha
compreendido a existência; uma inexorável necessidade condena-o ao trabalho. Em
meio a trabalhos e penas, lamenta-se e revolta-se airoso contra a dor que lhe
foi imposta. Esse suplício dura, enquanto não se determina a encontrar o
paraíso, tão logo saiba renunciar ao mesmo. Sofrer, trabalhar: significará
isso, por acaso, decadência? E quem pode ser forte e poderoso sem antes haver
sofrido cruelmente? A alma que quer conquistar a nobreza e a soberania deve
buscá-las nas fragas do sofrimento.
Isto
não quer dizer, todavia, que seja indispensável buscar o ascetismo ou tormentos
intencionais: a vida saberá nos proporcionar provas salutíferas e nos brindará
o cálice, convidando-nos a esvaziá-lo com firmeza, sem necessidade, de nossa
parte, de aí acrescentarmos qualquer amargor. O Iniciado não teme a dor e sofre
com coragem, mas não vive obrigado a amar nem a se comprazer com o sofrimento.
Tem fé na vida. Sabe-a misericordiosa, apesar de suas leis inexoráveis, e
saboreia as doçuras que nos reserva como compensação das penas que nos
inflige.
O
que devemos buscar é a harmonia, o acordo harmônico com a vida. Não podemos
obtê-lo de golpe; é indispensável uma penosa aprendizagem da Arte de Viver, a
Grande Arte por excelência, a Arte que praticam os Iniciados. A vida é sua
escola, onde não pode ser admitido aquele que não está decidido a beber do
cálice da amargura.
Sem
embargo, a vida nos brinda felicidade. Todo ser acredita ter direito a ela, e
esta é sua constante aspiração. Vivemos de esperanças, e nos parecem mais leves
as penas de hoje, se as ponderarmos com as alegrias de amanhã. A vida corrente
pode trazer para nós certas ilusões e tratar-nos como adolescentes, mas a vida
iniciática considera-nos homens já maduros, pouco dispostos, portanto, a
deixar-se levar por ilusões.
A
felicidade nos é assegurada, contanto que a saibamos buscar nós mesmos. De nada
somos credores sem merecimento: se a vida nos é dada, é para que a utilizemos
como é devido, não para desfrutar dela sem pagar tributo. Saibamos, pois,
considerá-la sob seu verdadeiro aspecto. Entremos a seu serviço dispostos a
consagrarmo-nos ao estrito cumprimento de nossa obra de vida, que deve ser a
Magna Obra dos Alquimistas.
Em
todos os tempos, a Iniciação foi privilégio dos valentes, dos heróis dispostos
a sofrer, dos homens com energia que não pouparam seus esforços. É a
glorificação do esforço criador do sábio que chegou à plena compreensão da
vida, a tal ponto que, ao viver para trabalhar, consegue romper as correntes do
presidiário condenado a trabalhar para viver.
Diz
o adágio: Trabalho equivale à Liberdade, e ainda seria melhor dizer que nos
libertamos da escravidão através de nosso amor ao trabalho. É, portanto,
questão de desejar o trabalho, de buscar o esforço fecundo sem temor ao
sofrimento que possa acompanhar sua realização. Então a vida será, para nós,
amena, confortadora e bela.
Assim
fica explicado o simbolismo da poção cuja amargura não deve nos desanimar.
Podemos devolver-lhe o primitivo sabor, aceitando, simplesmente, a obrigação de
beber, até o fim, o Cálice Sagrado da Vida.
fonte: trecho do livro Ideal Iniciático.
Milton Cantos Lopes
fonte: trecho do livro Ideal Iniciático.
Milton Cantos Lopes
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