A proibição de
discussão religiosa em loja é assunto reiteradamente debatido. Não há, todavia,
como o exemplo para ilustrar o princípio. Quando procurava uma ocorrência -
real ou fictícia - que não soasse forçada, recebo um simpático cumprimento
feito por um leitor aqui num dos comentários: "Que o Senhor lhe conceda
discernimento para encontrar a verdade que liberta e está em Cristo
Jesus!".
Nem de propósito. Este
cumprimento, feito sem qualquer dúvida com a melhor das intenções,
consubstancia, precisamente, o tipo de discurso que, apesar de socialmente
admissível fora de loja, não o é numa loja maçônica.
Mas porque é que um
simples cumprimento como este - que até é auspicioso, traduzindo os desejos de
que suceda ao seu destinatário uma coisa que o emissor tem por positiva - não é
admissível em loja? Vejamos com mais atenção o que se diz.
"Que o
Senhor"... Até este início insuspeito pode gerar controvérsia; se, por
exemplo, se pertencer a uma religião que denomine a Divindade de outra forma, é
quanto basta para que se sinta a expressão como estranha.
Nesse sentido, não é
difícil imaginar uma situação em que alguém interprete isto como sinônimo de
"que o meu Deus - que não é o teu - te conceda isto e aquilo".
"... a verdade que liberta ...", esta sim, é uma quase certa fonte de
discórdia, por causa da sua menor palavra: "a". Referir-se
"a" verdade que liberta, especialmente junto de um nome comumente
associado a certa religião, implica ser esta verdade algo de único, que não há
outra, e que muito menos há várias.
Referirmos a
existência de um único caminho certo implica que quem não o percorra estará indo
por caminhos errados - o que é contrário à ideia de que cada um deva sentir ser
respeitadas as suas crenças de forma que não haja preponderância de quaisquer
outras sobre estas - ou destas sobre quaisquer outras. Isto faz-nos chegar à
última parte: "... e está em Cristo Jesus". Se a todas as outras
fórmulas se poderia, eventualmente, fazer "vista grossa" quando
utilizadas em loja, esta última não é, de todo, passível de ser aceite, por ser
indiscutivelmente própria de uma religião, e por isso sentida como estranha por
quem professe uma fé diversa.
Cada religião tem uma
terminologia própria para referir a(s) divindade(s) a quem presta culto. Forçar
seguidores de várias crenças a utilizar a terminologia de uma delas seria algo
de muito pouco paritário. Para ultrapassar esta dificuldade, a maçonaria
decidiu adotar uma nomenclatura própria, alheia a qualquer crença ou religião -
e por isso equidistante de todas estas - para designar a Divindade. Assim, em
vez de um dizer Elohim, outro Deus e outro Jesus Cristo; em vez de invocar
Allah ou Jeová, Krishina ou Zoroastro, Thor, Zeus - ou a Divindade por qualquer
outro nome - os maçons dizem "Grande Arquiteto do Universo".
Essa expressão designa
não qualquer "deus maçônico" - pois tal não existe - mas constitui
apenas um mesmo nome através do qual todos os maçons se referem cada um ao seu
próprio Deus.
De fora fica também,
evidentemente, tudo o que é próprio desta ou daquela religião.
Não faria
sentido dizer-se "invoquemos Maria, mãe do Grande Arquiteto do
Universo", ou "O Grande Arquiteto do Universo é grande, e Mohamed é o
seu profeta". Assim, em loja, apenas nos referimos ao "Grande
Arquiteto do Universo". As pranchas maçônicas - na maçonaria regular -
começam sempre: "À G.·.D.·.G.·.A.·.D.·.U.·. ", uma vez que todo o
trabalho é feito "À Glória Do Grande Arquiteto Do Universo". Cada um
dedica o trabalho que fez ao Deus da sua predileção, mas todos sob uma "alcunha"
comum. Um pouco como cada adepto se refere ao receptivo clube como "o
Glorioso"...
Um dos momentos altos
de cada sessão é a Cadeia de União. Uma vez formada, um dos irmãos profere uma
curta oração, que não deve ser própria de nenhuma religião, e é, as mais das
vezes, espontânea. Pode ser algo como: "Agradeçamos ao Grande Arquiteto do
Universo a graça de estarmos todos aqui, juntos uma vez mais, e recordemos
todos quantos já partiram para o Oriente Eterno".
Dificilmente alguém
poderá sentir-se posto de parte perante tal fórmula, e é precisamente o que se
pretende: fomentar a união, a identificação apesar da diversidade, e o foco
naquilo que, de fato, é comum a todos.
Não faria sentido,
apesar de a esmagadora maioria dos maçons da nossa loja ser cristã, rezar-se um
"pai-nosso" na cadeia de união - até porque um dos nossos irmãos é
judeu, e sentir-se-ia certamente desconfortável. E mesmo que todos fôssemos
cristãos, o princípio é para manter - basta recordar que recebemos
frequentemente visitas de irmãos de outras lojas, e nunca sabemos que fé
professam...
Esta limitação de
expressão pode tornar-se problemática para os seguidores de certas religiões
que tenham por princípio o testemunho permanente perante os outros dos valores,
princípios e verdades da sua religião - e, no limite, tentar converter os
demais para a sua fé, expondo as fraquezas de uma crença e exaltando a outra.
Quem sinta essa obrigação não poderá sentir-se bem na maçonaria, pois esta não
lhe permite.
Apesar de tudo o que
disse ser regra apenas vigente em loja e em sessão ritual, o que acaba
frequentemente por suceder é - por força do hábito por um lado, pela
interiorização dos princípios pelo outro, e por último pela generalização da
sua aplicação - desenvolver-se certo comedimento nas palavras, e acabar por se
evitar a utilização de expressões manifestamente próprias de uma ou outra
religião, substituindo-as por outras menos passíveis de fazer o nosso
interlocutor sentir-se desconfortável. Assim, não posso senão agradecer o
cumprimento, e retribuir: "Que o Grande Arquiteto do Universo lhe conceda
o discernimento para encontrar - e saber manter - a Luz!"
Paulo M.
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