Morte e Ressurreição. A
premissa básica de toda a mitologia religiosa ou laica é a aplicação e o
desenvolvimento de três acontecimentos fundamentais para todos os povos e
civilizações: Nascimento, Morte e Renascimento, ou melhor, o Ciclo da Vida em
sua composição mais fundamental.
Faz-se necessário
compreender que tal fundamentação não corresponde a uma exclusividade de apenas
uma nação ou de uma cidade-estado pertencentes à Antigüidade, mas às todas as
religiões indistintamente, sendo estas ainda praticadas ou não.
Encontramos esses
princípios desde o Egito dos faraós e deuses zoomórficos, através do Mito de
Osíris e Ísis, até os panteões greco-romanos, através de diversos relatos
incluindo-se nestes os Mitos de Orfeu e Prosérpina; encontramos nos mitos
babilônicos, Epopéia de Gilgamesh e da História de Ishtar; nos mitos
nórdico-germânicos de Odin ou Wotan; na mitologia hindu e budista e percorrendo
as três maiores religiões do Ocidente – o Judaísmo através de Moisés, Ezequiel e
Enoque; o Cristianismo através da paixão e ressurreição de Jesus Cristo; e o
Islã através de Maomé.
Dentro destes contextos,
demonstram-se dois princípios distintos, sendo que o primeiro celebra a morte,
através da traição por parte de seus iguais, como meio de expiação e
purificação para o engrandecimento ou glorificação de um ato ou de uma pessoa;
e o segundo celebra a morte como meio de perpetuação de um princípio, seja este
de caráter natural, religioso ou organizacional político, através da renovação
constante sem, contudo incluir-se neste caso o ato de traição como instrumento
desta renovação.
Deste modo, podemos
realizar duas qualificações míticas envolvendo Nascimento, Morte e
Renascimento: os mitos ou lendas que envolvem o sacrifício para o aprimoramento
de um estado ou situação e os que envolvem a contínua renovação do mesmo estado
ou situação.
A Lenda de Hiram foi
criada dentro do contexto de Morte como instrumento de purificação e
engrandecimento, desenvolvida através da traição por seus pares e se
caracterizando como uma síntese das principais lendas da Antigüidade: a traição
por seus pares, como no caso de Cristo; o assassínio por membros de seu
convívio, existente em diversas lendas gregas e nórdicas; a ocultação do
cadáver e a marcha em busca do corpo desaparecido como na Lenda de Osíris.
Baseia-se no princípio natural da morte e ressurreição, como o retratado no
mito de Ceres e Prosérpina.
Sinteticamente, a Lenda
de Hiram envolve a construção do Templo, a morte do chefe dos trabalhos com a
posterior ocultação do corpo, seu descobrimento e punição dos assassinos, mas
para se compreender melhor o desenvolvimento da Lenda do Terceiro Grau, faz-se
necessário primeiramente descobrir e diferenciar a figura bíblica de Hiram
Abiff e a figura maçônica de Hiram.
A figura
histórico-religiosa de Hiram Abiff, descrita em vários trechos e livros da
Bíblia e apresentado como hábil artífice da corte de Hiram Rei de Tiro e aliado
de Davi e Salomão, permanece envolta em contradições e mistérios, justamente
pela falta de comprovação histórica e arqueológica de sua existência, apesar
dessa condição envolver quase a totalidade dos personagens bíblicos.
Hiram
Abiff, segundo os relatos bíblicos, seria filho de um filisteu chamado Ur,
casado com uma das filhas da tribo de Dan; existem também referências de que
sua origem remontaria à tribo de Neftali, sendo “filho de uma viúva”. O trecho referente à Construção do Templo de
Jerusalém constantes no Primeiro Livro de Reis demonstram a relação do rei Filisteu
com seu aliado israelita:
Primeiro Reis, 5, 15
No mesmo Livro de Reis,
um capítulo inteiro é dedicado à descrição das características do Templo e seus
materiais:
1-No ano 480 depois do
êxodo dos israelitas do Egito, no quarto ano do seu reinado em Israel, no mês
de Ziv, isto é, no segundo mês, Salomão começou a construir o templo do Senhor.
2-Este templo, que o rei
Salomão construiu para o Senhor, tinha trinta metros de comprimento, dez de
largura e quinze de altura.
3-O vestíbulo na frente
do recinto principal do Templo tinha dez metros de comprimento, no sentido da
largura do templo, e cinco metros, no sentido do comprimento do templo.
4-Além disso, o rei
mandou abrir no templo janelas com molduras e grades.
5-Ao redor do muro do
templo, em torno dos muros do recinto central e do recinto dos fundos, e
encostada na parede do templo, construiu uma varanda, fazendo ao redor
compartimentos laterais.
6-O compartimento
lateral inferior media dois metros e meio de largura, o compartimento lateral
intermédio tinha três metros de largura e o terceiro tinha três metros e meio
de largura; é que tinha mandado colocar reentrâncias nas paredes externas do
templo para evitar o encastelamento nas próprias paredes do templo.
7-A construção do templo
se ia fazendo com pedras já esquadriadas na pedreira, de modo que durante as
obras não se ouviam no templo nem martelos nem cinzéis nem quaisquer
instrumentos de ferro.
8-A entrada para o andar
lateral intermédio se achava ao lado do templo, e por escadas em caracol se
subia ao andar intermédio e deste para o terceiro.
9-Quando Salomão
terminou a construção da casa, cobriu-a com vigamento e artesãos de cedro.
Primeiro Reis, 6, 1:9
Neste trecho, cabe
ressaltar o fato de não se realizar trabalhos de cantaria no recinto do Templo,
sendo estes realizados nas pedreiras de Salomão e os blocos serem somente
montados em seus respectivos lugares.
Portanto, pode-se
inferir que a realização de trabalhos dentro do recinto sagrado do Templo era
proibida por Salomão e seus sacerdotes.
Entretanto, a citação de Hiram Abiff, o suposto mestre de obras do
Templo, é encontrada de maneira contraditória à defendida na essência da Lenda
Maçônica, que o apresenta como um exímio mestre de obras e arquiteto. No capítulo
7° do Primeiro Livro de Reis e o que se apresenta no Segundo Livro de Crônicas
no capítulo 2°, Hiram Abiff nos é apresentado mais como um fundidor e
metalúrgico:
Primeiro Reis, 7, 13:14
10- E Hiram, rei de
Tiro, mandou a Salomão, por escrito, a seguinte mensagem: “Foi por amor ao povo
que o Senhor te fez reinar sobre ele.
11-Pois bem, eu te envio
um homem competente, Hiram Abiff.
12 -Ele é filho duma
mulher danita e dum pai tírio. É especialista em trabalhos de ouro, de prata,
de bronze, de ferro, de pedra e de madeira, bem como de púrpura vermelha e
roxa, de linho, de carmesim, como também em gravações de qualquer espécie e na
execução de obras de arte, que se lhe encomendam, em colaboração com os teus
profissionais e os de teu pai Davi, meu senhor.
Segundo Crônicas, 2,
10:13
13 -O rei Salomão mandou
buscar de Tiro, Hiram.
14-Ele era filho de uma
viúva da tribo de Neftali, mas seu pai tinha sido cidadão de Tiro e trabalhava
em bronze. Hiram era uma artífice muito hábil e inteligente, um profissional
para qualquer trabalho em bronze. Ele se apresentou ao rei Salomão e executou
todas as tarefas que o rei lhe confiou.
Primeiro Reis, 7, 13:14
15- Então Hiram, rei de Tiro, enviou seus
servidores a Salomão, porque tinha ouvido que fora ungido rei em lugar de seu
pai Davi; é que Hiram tinha sido amigo de Davi durante toda sua vida.
Segundo Crônicas, 2,
10:13
De onde advém então a
descrição pormenorizada da Lenda da Construção do Templo que envolve o Ritual
de Exaltação ao Grau Terceiro, se o Hiram Abiff histórico não era um pedreiro e
muito menos se desbastava a pedra dentro do recinto do Templo?
A Maçonaria valeu-se de
um personagem histórico e bíblico para dar significado à passagem do Grau de
Companheiro para o Grau de Mestre, como meio de purificação e engrandecimento,
consolidando-se nos moldes atuais nos princípios do século XVIII, uma vez que
nenhuma menção da mesma pode ser encontrada nas Old Charges e no Poema Regius.
Pode-se também entender
a criação da Lenda de Hiram como um marco de passagem entre a Operação e o
Simbolismo de nossos trabalhos. Uma das primeiras menções oficiais da Lenda
aparece no preâmbulo da Constituição de 1717, copilado pelo Reverendo e Ir:.
James Anderson, coincidindo com a criação da primeira Potência e marcando
“teoricamente” [1] o fim das atividades maçônicas operativas.
Pode-se, portanto
inferir que a Lenda de Hiram demonstra essa passagem de Maçons Operantes para
Maçons Simbólicos, analisando-se certas passagens descritas da Lenda, uma vez
que a morte de Hiram representaria a passagem da Operação para o Simbolismo, da
ação para a contemplação e da aplicação de conceitos para a revisão de
posturas:
Templo se encontrava
praticamente concluído: “Estando a construção quase completa, quinze CComp:.
[...]”. Como o talhar de pedras dentro de recinto sagrado era proibido podemos
concluir que o trabalho dos AApr:. achava-se concluído, uma vez que os mesmos
eram responsáveis pelo trabalho bruto de cortar e aparar pedras, sendo este
realizado nas pedreiras do deserto da Judéia.
O fato de o crime ser cometido
contra o chefe dos TTrab:. impossibilitando a conclusão do Templo em sua forma
definitiva, criando a necessidade da revisão de projetos, intenções artísticas
e de palavras de reconhecimento dos Graus, representa exatamente a passagem dos
meios operativos para o Simbolismo professado pelos Aceitos, nos primórdios da
criação da Grande Loja.
Os assassinos pertenciam
à classe dos CComp:. responsáveis pela decoração e ornamentação e estes se encontravam
no Templo, o que se concluí que a construção se encontrava no estágio da
duplicação de símbolos e adornos. A época da criação do Terceiro Grau e da
Lenda de Hiram, os Maçons se reuniam operativamente no Grau de Companheiro [2].
O relato bíblico e a
Lenda de Hiram vinculam a Franco-Maçonaria aos sistemas congêneres religiosos e
lendários existentes nas civilizações do Crescente Fértil e aos antigos
mistérios egípcios, hindus, greco-romanos e cristãos.
Deste modo, podemos
verificar que os nomes dos assassinos, com as devidas alterações existentes em
alguns Ritos, mantêm uma correlação com os Deuses do Bem e do Mal dos Filisteus
– Yehu e Baal – como apontado por Albert Pike em Morals and Dogma of the
Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry, apresentando as devidas
declinações latinas para os três personagens. O nome dos assassinos derivaria
de Yehu-baal, a dualidade entre o bem e o mal, e as três silabas finais dos
nomes: a, o, um produz a palavra sagrada dos Hindus A:. U:. M:. produzindo a
Trindade Hindu – Vida dada, Vida preservada e Vida destruída.
A Acácia mencionada como
marco do túmulo de Hiram também se vincula à preservação da vida e a
ressurreição dos mártires maiores da Antigüidade: o esquife de Osíris fora
realizado em madeira de acácia e este renasceu e floresceu no delta do Nilo; e
segundo a tradição cristã a madeira da cruz de Cristo seria de acácia.
A autoria da Lenda de
Hiram, ao longo dos anos e variando-se de autores a autores, tem percorrido os
mais diversos eruditos maçônicos, desde os filósofos Locke e Bacon, passando
pelo arqueólogo, historiador, Maçom e Rosa+cruz Elias Ashmole [3], pelos
historiadores maçônicos Ramsay, Pike e Mackey, Desaguliers, Wren e outros.
Os historiadores
eruditos, desde a criação da Loja de Pesquisa Quatuor Coronati 2026 da Grande
Loja Unida da Inglaterra, têm tentado trilhar o caminho da criação do Terceiro
Grau, uma vez que quando da criação da Grande Loja da Inglaterra somente
existiam os dois primeiros Graus como oficiais. Em 1730, o Ir:. Samuel Prichard
em sua obra Masonry Dissected já
demonstra a existência do Terceiro Grau, encontrando-se nela a primeira
referência à Lenda de Hiram. Um famoso historiador escocês, conhecido por
Murray Lyon, descreveu John Teophilus Desaguliers, um dos primeiros Grãos
Mestres da História Maçônica, como o “co-fabricante e pioneiro do sistema de
Maçonaria simbólica”.
Em artigo publicado na
Revista Engenho & Arte, o Ir:. Leo Zanelli propõe que a criação do Terceiro
Grau e a Lenda de Hiram envolveria o contato de Desaguliers com seus
companheiros da Royal Society of Arts and Sciences, entre esses os rosa+cruzes
John Locke, Isaac Newton e os maçons Christopher Wren, arquiteto, e Andrew
Ramsay. Não podemos deixar de informar que a Royal Society derivou-se
diretamente do Colégio Invisível dos Rosa+cruzes, um conclave de cientistas,
filósofos e esotéricos existentes durante o período conturbado da História da
Inglaterra, caracterizado pelas revoltas religiosas e conhecido como
Restauração [4].
De certa forma, apesar do Ir:. Zanelli não concluir seus
comentários, tudo levar a crer que a criação do Terceiro Grau e a Lenda de
Hiram envolveu a participação dos Aceitos no processo, de modo a criar um Grau
elevado que se diferenciasse dos Graus Operativos, um Grau onde as Palavras,
Sinais e Toques se correspondessem com o fato da morte do mais operativo dos
mestres, onde a ação operativa daria lugar a ação contemplativa e simbólica dos
trabalhos futuros.
Mas o mais importante de
fato é o que representa o Terceiro Grau, o significado da Lenda de Hiram, a
Theobaldo Varolli Filho salientou em uma de suas obras:
“... é inútil buscar
autorias individuais da lenda do terceiro grau [...] Nada de admirar, se a
lenda da paixão de Hirão Abi (sic) ainda seja narrada de maneiras diferentes
nos diversos rituais espalhados pelo mundo. Cada alto corpo maçônico adota uma
‘história tradicional’ (lenda). Cada Rito mantém sua própria versão. Cabe o
essencial da lenda e não o modo de contá-la. Sabe-se, mais, que boa parte do
ritualismo de Mestre adveio de uma segunda fase de antigos rituais de
Companheiro, antes de surgir o Mestrado.” (grifos nossos).
A morte maçônica de
Hiram e a aplicação da justiça contra seus assassinos significam o triunfo da
Verdade sobre a Ignorância e o estabelecimento da restituição do corpo do
Mestre perdido ao local sagrado do Templo, fornecendo-lhe o sepultamento
adequado e merecido, proporcionando-lhe a imortalidade justa e virtuosa dentro
da memória do mestrado maçônico.
Simboliza a pura tradição maçônica, isto é, a
Virtude e a Sabedoria, posta, constantemente, em perigo pela Ignorância, pelo
Fanatismo e pela Ambição de Maçons que não souberam compreender a finalidade da
Franco-Maçonaria nem se devotar à Sublime Obra, pois sendo a Franco-Maçonaria
um sistema de moral exposto em símbolos e alegorias, o verdadeiro Maçom deve
nesta e em outras passagens buscar o sentido místico, mítico e moral dos
personagens históricos e lendários, produzindo-se a verdadeira e vivente
Iniciação através de nossos perseverantes e desinteressados esforços.
Trabalho do Ir:. Fábio
Rogério Pedro, M:. I:., CIM 188.163.
[1] Teoricamente, pois a
corporação de ofício de pedreiros livres, ou a Oficina, permaneceu atuando nos
dois ramos – o operativo e o simbólico. A construção da Catedral de Saint Paul
em Londres realizada no século XVIII, após a destruição da anterior durante o
grande incêndio de Londres de 1666, foi realizada por obreiros maçons o que
pode ser atestado pelas indicações deixadas nos materiais empregados e no
túmulo do arquiteto e Ir:. Sir Christopher Wren, que se encontra no recinto da
Catedral.
[2] A palavra
Companheiro, em inglês Fellowcraft, deriva do termo britânico Fellow of the
Craft, ou Companheiro de Ofício.
[3] Elias Ashmole,
apesar de se ter difundido seu nome como o autor do Terceiro Grau, na verdade
não participou da criação e compilação do mesmo, uma vez que quando da adoção
do mesmo, em 1726, o notável Ir.'. a muito já passara ao Oriente Eterno.
[4] A Restauração
Inglesa envolveu um conturbadíssimo período na História Inglesa: após a morte
de Charles I, católico e Stuart, filho
de James II da Inglaterra e Escócia que assumira o trono inglês após a morte de
Elizabeth I, pelos partidários de Cromwell, Lorde Protetor da Inglaterra, o país
passa por uma série de regimes governamentais: “Reino Ontem [sob os Stuart],
República Hoje [sob Cromwell], Império Amanhã [após a Restauração e domínio de
1/3 do planeta pelos britânicos]”.
Bibliografia
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Escocês Antigo e Aceito – História – Doutrina - Prática. Londrina: A Trolha,
1996 2ª edição.
FIGUEIREDO, José
Gervásio. Dicionário de Maçonaria. São Paulo: Pensamento, 1981.
GRANDE ORIENTE DO
BRASIL. Ritual do Grau de Mestre. Brasília: Gráfica do GOB, 1995.
PIKE,
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Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry.
Charleston: Supreme Council of the Southern Jurisdiction, 1871.
____________
The Porch and the Middle Chamber. Montana: Kessinger Publ. Company, 1997.
TRAWTEIN,
Breno. A Lenda de Hiram. In A
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UNITED
GRAND LODGE OF ENGLAND. Emulation Rite - Master Degree Ritual. London: UGLE,
1997.
VAROLLI
Filho, Theobaldo. Curso de Maçonaria
Simbólica –Tomo III Mestre. São Paulo: Gazeta Maçônica, 1993.
____________. Ritual e
Instruções de Mestre Maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito. São Paulo: GOSP,
1974.
ZANELLI, Leo. Pura &
Antiga. In Engenho & Arte na Maçonaria Universal N° 3. Rio de Janeiro: Janela Editorial. Verão 1999.
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