Os maçons
referem-se à iniciação como um segundo nascimento, como um renascimento após
uma morte indispensável que qualificam de simbólica. Mas, o que significa
“morte e renascimento”? É uma ideia poética que nada tem a ver com a realidade
ou um ato concreto? O que deve morrer e renascer?
Um dia nascemos sem
pedir a quem quer que seja. Alimentam-nos com leite, depois comida cozida e
finalmente com alimentos sólidos para que nosso corpo cresça e passe de bebê a
criança e de criança a adulto. Ao mesmo tempo, tentamos, com sucesso variável,
alimentarmo-nos intelectualmente enquanto juntamos inconscientemente eventos
aleatórios, uma nutrição emocional.
Em última análise,
tornamo-nos o que somos: homens e mulheres imersos em uma sociedade onde cada
um está lutando para não ser conduzido pelas ondas do nada.
Às vezes,
percebemos que nossos desejos de mais poder, riqueza e prazer realmente não nos
satisfazem e deixam um gosto amargo de ausência, de insatisfação, de
descontentamento que nos leva a desejar mais e mais, na esperança, da próxima
vez de ser saciados.
Mas nosso egoísmo,
mesmo disfarçado de justiça ou ideal, nos empobrece em comportamentos
irresponsáveis que renovamos para preencher a lacuna de nossos medos de
desaparecer sem afirmar nosso ser ali. Com poucas exceções, ou em alguns raros
momentos depois de um surto cheio de premissas, nós fenecemos antes mesmo de
florescer.
Tudo o que existe
sobre a Terra está condenado a desaparecer. A morte não é uma anomalia. A
intrusão da morte do corpo na vida é uma etapa normal, natural e irremediável.
Não se trata de um golpe divino, mas de um ciclo natural inevitável. O estado
de ser humano-animal nos condena à morte.
Quando morrermos, a
Terra nos esquecerá pouco a pouco até a completa extinção das lembranças. Então
não existiremos mais em qualquer memória, qualquer coração, qualquer
consciência. Esse desaparecimento é característica de minerais, plantas e
animais, incluindo o homem que, no entanto, tem a particularidade de saber que
vai morrer.
RENASCIMENTO
O grande assunto do
homem ao longo de sua vida não é morrer, nem mesmo se preparar para morrer, mas
viver, viver de forma justa, de acordo com a origem de sua natureza humana em
porvir, para deixar a cena sem lamentos, com a alegria de ter realizado sua
humanidade.
O oposto da morte
não é a vida, mas o nascimento. Morrer faz parte do nosso nascimento. Não podemos
razoavelmente aceitar o nascimento de nosso corpo sem aceitar sua morte. A
recusa a morrer vem de outro lugar, de outra fonte, de outra voz, de nossa
profundidade, chama-nos a tender para o aperfeiçoamento infinito como se a
única finalidade da vida fosse tornar-se mais humano, de completar o homem no
Homem. Essa é nossa liberdade.
A liberdade
congênita do homem o torna responsável por suas escolhas de vida: seja de viver
de acordo com seu egoísmo natural de animal humano, seja de superar e viver de
acordo com as leis do desenvolvimento do universo, do devir mais humano.
Mais que a ausência
do instinto animal, nossas liberdades nos permitem atingir a maturidade de uma
consciência interior puramente humana de um Ser que nos obriga, por sua
natureza, a uma ética de amor e respeito.
Esse
desenvolvimento humano se inicia em nossas determinações diárias de não seguir
nossos impulsos automáticos para tornar nossa existência um lugar e um espaço
de experimentação, de exercício e de evolução de nossa consciência do outro.
Nós decidimos, voluntariamente e livremente a não ser mais escravos de nossos
impulsos que influenciam nossos pensamentos, nossas visões, nossos medos, toda
a nossa vida.
Os rituais da
Maçonaria traçam o caminho a seguir e marcam as etapas. Ao nos aventurarmos no
caminho do autoconhecimento, o ser ordinário diminui de tamanho, se imobiliza,
sua expressão morre lentamente e deixa espaço livre para o ser essencial. A
morte do ser comum não é a aniquilação do ego, ao contrário, com a morte de nossa
personalidade egoísta tornamo-nos mais nós mesmos.
Essa morte é
chamada simbólica porque não se trata da morte física, mas da morte do ego. A
morte se torna uma imagem, uma representação da realidade, porque de fato o
próprio ego não morre, ele está sempre lá dentro de nós, pronto para ressurgir
à menor fraqueza de atenção.
Os mecanismos
egoístas não estão mortos, mas silenciados, não são mais eles que dirigem
a nossa vida, mas a inteligência do Ser que se impõe diante da inteligência
mecânica comum. O homem é sempre um mamífero, um animal, mas não mais uma
besta. O nosso Ser se torna o treinador de nossa bestialidade.
Se a morte não é
morte, mas o domínio de uma parte de nós mesmos, o renascimento, o segundo
nascimento, também não é aquele de nosso corpo nascido de uma vez por todas,
mas o nascimento do nosso Ser interior, dessa parte muito especial de nós
mesmos, que faz toda a diferença entre um animal-humano e um humano-animal.
A supressão de uma
parte de nossa vida, a morte simbólica do sensível, a rejeição de nossas
percepções elementares egoístas, o desnudar-se para reencontrar a Luz que
conduz a outra região da vida que inclui a primeira, exige uma vigilância
diária que o ego não tem vontade de sustentar, porque ele sabe que o resultado
de tais esforços será sua morte simbólica.
É preciso uma
vontade rara para escolher a despossessão do homem-animal primitivo em
benefício do homem verdadeiro e de sua paz na unidade. Essa vontade não nos
pode ser imposta de fora para dentro, mas vir somente de nós mesmos. Essa é a
nossa evolução que se trata e somos nós que decidimos contra todas as nossas
depravações e aquelas que atribuímos aos outros.
CÂMARA DE REFLEXÃO
Mas, sabendo disso,
o problema não é necessariamente resolvido. Não é suficiente intelectualizar
nossas vidas, abafar nossos impulsos egoístas, moralizar nossas aparências para
perceber nossa humanidade espiritual, para passar de nossa "mecanicidade" ao
nosso Ser. Para voltar à essência, somente conta a ação de retorno na direção
oposta àquela do curso normal e habitual de nossos pensamentos, de nossas
referências, de nossos desejos.
Devemos morrer para
nós mesmos, para o que somos, para a imagem que queremos dar a nós mesmos, aos
nossos lugares, à nossa sabedoria e ver todo o horror de nossa situação para
renunciar a identificar nossa existência unicamente aos nossos movimentos
naturais que nos lançam em direção às honras e agitações das coisas da vida.
Precisamos de outro
eixo, outra atenção a nós mesmos que escute nossos pensamentos e nossas
emoções. Precisamos de outras referências diferentes daquelas que aprendemos
até agora.
O apego habitual de
nossa vida comum aos nossos pensamentos automáticos exclui de nossa consciência
a percepção de nossa própria existência enquanto Ser independente possível e
nos conduz unicamente à instabilidade do mundo visível colorido por nossos
empréstimos passados.
Nossas vidas sem
futuro natural mais humano perde o seu significado essencial e procuramos
incessantemente o ilusório. Mesmo se compreendemos intelectualmente que nossos
desejos são frívolos em relação ao sentido da vida, não é evidente os
considerar no momento em que surgem e se insinuam em nossa consciência.
Para manter a mente
clara, precisamos de uma âncora referencial mais sólida que o reflexo da imagem
interior devolvido pelas situações exteriores fluidas.
É por isso que a
iniciação maçônica fala simbolicamente da Câmara de Reflexão, um espaço livre e
desconhecido dentro da terra humana, onde deixa o iniciando. Ele se
encontra ali, fora de si mesmo enquanto ego, use entidade objetiva, generosa, justa e
protetora. Uma entidade que é o que ele aspirava ser, que é sua natureza
original em movimento, que é o seu Ser, sua verdadeira humanidade superior ao
seu ser mamífero.
Caminho de evolução
difícil! São nossas escolhas diárias pela existência do ego e suas aparências
ou nossos combates pelo Ser que farão com que seremos somente homens condenados
à morte ou iniciados se tornando de uma humanidade real que se abre para a
eternidade.
Fora ou dentro de uma
ordem iniciática maçônica, depende de nós atingir o Humano que somos
conclamados a nos tornarmos por evolução natural.
O homem é essa
coisa, esse animal, esse ser que pode se compreender, se transcender ele mesmo
e, em seguida, perceber, além do conhecimento filosófico, as estruturas
religiosas e estados psicológicos, a experiência do Ser até a revelação do
Espírito original.
De morte em morte
simbólica, dirigimos pouco a pouco nossas energias para o inexprimível que
ressoa dentro de nós.
CICLO DE VIDA
No entanto, chegará
a hora da morte real do nosso corpo animal. Ela é natural na ordem das coisas.
A iniciação final não é mais uma morte simbólica, mas a morte física. É a
partir dela que, talvez, saberemos a Verdade sobre o significado do mundo e o
sentido de nossas vidas.
Fundamentalmente, a
morte física não é nem absurdo nem contra a natureza. Ela é parte de um ciclo
natural da vida, que vai desde o nascimento até a morte.
Para vegetais e animais, esse ciclo se reproduz
inevitavelmente em todas as plantas, todos os insetos ou mamíferos são
programados para, durante suas vidas, ou imediatamente antes de morrer,
permitir o arranque de um novo ciclo de vida.
O símbolo iniciático desse ciclo é o Ouroboros,
a cobra enrolada em roda que morde a ponta da cauda.
É o mesmo para a
espécie humana que se reproduz de uma geração para outra. Mas o iniciado tem
não só uma consciência cíclica própria de toda a natureza, mas também uma
consciência assintótica. Os ritos de iniciação maçônicos desenvolvendo o Ser
interior- humano durante o ciclo de vida zoológico abre a porta para outra vida
participante de um ciclo em espiral que expande a consciência de uma visão que
se amplia gradualmente à medida que o iniciado se eleva em direção ao cume.
Assim, pode ser que
o Ser nascido durante a vida terrena, que adquiriu as qualidades e a força
necessárias e que não tem nada a ver com a natureza animal, continue sua
trajetória em um espaço-tempo eterno.
A vida (primeiro
nascimento) permite o nascimento do Ser (segundo nascimento) e permite assim a
implantação do nosso renascimento infinito.
Nascido no tempo,
pelo processo evolutivo de sua energia, o Ser pode retornar de seu exílio
terrestre ao seu espaço original, fora do tempo, em seu coração eterno e viver
sua permanência. Paradoxalmente, a morte [do corpo físico] abre para a
eternidade [do Ser].
Este é, talvez, o
objetivo da energia criadora que flui através de cada ser e continua a natureza
humana para o seu pleno florescimento na luz.
A iniciação
maçônica no Rito Escocês Antigo e Aceito formula essa ideia após os dois
primeiros graus preparatórias no mito do assassinato do mestre Hiram (o Ser
interior) por maus companheiros (os mecanismos egoístas).
Ela propõe
exercícios rigorosos que independentemente de qualquer crença, qualquer sistema
de pensamento e de qualquer teoria nos lançam progressivamente ao longo de 33
graus, lá onde não sabemos coisa alguma.
Estes exercícios nos colocam diante do
infinito do Conhecimento supremo. A experiência cara a cara, vivida
conscientemente nos fornecer a certeza da Verdade inexprimível, ao mesmo tempo
em que protege o espírito crítico, interrogativo e rigoroso condizente com um
verdadeiro iniciado.
Autor: Alain
Pozarnik
Ex Grão-Mestre da Grande Loja da França
Tradução: José Filardo
Ex Grão-Mestre da Grande Loja da França
Tradução: José Filardo
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