O tema comum do nosso
encontro de hoje é ÉTICA. Mas será que todos temos a mesma noção deste
termo? Não arriscarei muito se afirmar que, se fizéssemos um rápido inquérito
entre todas e todos os presentes, obteríamos respostas diversas…
Acho, portanto
útil maçar-vos alguns minutos com uma referência ao que os Mestres da filosofia
entenderam, ao longo do tempo, sobre o significado de Ética.
Para Sócrates, a Ética
consistia no conhecimento, de forma a vislumbrar, através da felicidade, o fim,
o objetivo, dos nossos atos. A Ética tinha como propósito preparar o homem para
se conhecer a si próprio, uma vez que, precisamente, é o Conhecimento a base do
ato ético. Essencial era o Conhecimento da Lei, das normas sociais vigentes,
porquanto, para Sócrates, a obediência à Lei era o limite entre a civilização e
a barbárie.
Em suma, para Sócrates,
o Conhecimento que subjazia à Ética não se limitava à mensagem do Oráculo de
Delfos, o conhecido aforismo do “Conhece-te a ti mesmo” – ainda hoje um dos
pressupostos ideológicos da Maçonaria especulativa -, mas abrangia
necessariamente o conhecimento, a obediência e a atuação respeitadora das leis
vigentes na Sociedade, condição essencial para a existência e manutenção do
corpo social.
Já para Aristóteles, a
Ética podia ser definida como uma busca da felicidade dentro do âmbito do ser
humano, se o Homem se esforçar a atingir a sua excelência. A Felicidade como
objetivo era central no conceito aristotélico de Ética e consistia na
realização humana e no sucesso que o Homem pretendia obter, para tal agindo no
seu mais alto grau de excelência, através do desenvolvimento das suas
qualidades de caráter. Esta noção de aperfeiçoamento, de aprimoramento das
nossas características, em busca da maior aproximação possível da Perfeição
também é cara ao ideário maçônico.
Platão construiu o seu
conceito de Ética em torno da finalidade da condução do Homem ao Bem, um dos
valores arquetipicamente existentes no mundo ideal, no plano dos Deuses, que os
homens apenas podiam aspirar a emular.
Em face deste arquétipo
do Bem, a vida humana não se poderia resumir apenas à busca do prazer, mas
dever-se-ia dedicar a atingir o valor mais alto do Bem. Para tal, era essencial
a ideia da Ordem, ou da Justa Proporção, que consistia no equilíbrio de
diversos elementos desembocando no mesmo e justo fim.
Designadamente, o Bem se
atingia através da atuação na justa medida, do equilíbrio, entre o Prazer e a
Inteligência. Tal Bem, evidentemente – falamos do fundador do Idealismo… – não
consistia nas coisas materiais, mas em tudo aquilo que permitia o
engrandecimento da alma, ou seja, a ética platônica ensinava que acima dos
prazeres, riquezas ou honras estava à prática das Virtudes – outro conceito que
indubitavelmente integra o cerne do pensamento maçônico.
Voltando agora a atenção
para a Idade Média, verificamos que Santo Agostinho – talvez o melhor exemplo
do pensamento dominante em dez séculos de História do Pensamento Ocidental –
tinha, não surpreendentemente, uma noção completamente diferente do conceito de
Ética. No paradigma agostiniano, a Ética Humana dependia de dois pólos: por um
lado, Deus, o Supremo Bem; por outro, o Pecado Original, afetando toda a
Humanidade.
Por via deste, o Homem
não era intrinsecamente Bom e necessariamente que seria levado ao Mal e aos
vícios da carne, a não ser que lograsse seguir uma vida virtuosa, em Deus. Para
Agostinho, a atuação ética pressupunha o domínio da natureza humana,
conspurcada pelo Pecado original, mediante uma vida virtuosa, através da qual
seria possível aceder à Salvação.
Para ele, a verdadeira
Felicidade está na esperança da Salvação e, portanto, depende da Vida Eterna.
Assim, embora Agostinho partilhasse com Aristóteles a noção da essencialidade
da prática das virtudes e do aprimoramento individual, porque para ele Deus é o
princípio e o fim de todas as coisas, a Felicidade é inatingível no decorrer da
vida humana, só sendo alcançada junto de Deus na Vida Eterna, para tal sendo
indispensável à conduta ética, isto é, a vida virtuosa.
Oposto à visão
agostiniana da Ética é o conceito que dela teve Nicolau Maquiavel. Refletindo
na esfera do Poder, sua obtenção, manutenção e exercício, mas facilmente se
extrapolando o seu pensamento para a conduta humana em geral, Maquiavel define
como valores essenciais a manutenção da pátria e o bem geral da comunidade,
tudo se subordinando a eles, custe o que custar.
Assim, uma ação só numa perspectiva
histórica pode vir a ser considerada boa ou má consoante o resultado com ela
obtido em prol dos ditos valores essenciais. Esta crua visão facilmente pode
ser considerada como anética, pois põe o acento tônico nos fins, nos objetivos,
cuja obtenção ou não justificaria ou não a ação realizada.
Mas a simples recusa
desta noção é, a meu ver, insuficiente. Importa ainda anotar o primeiro
aparecimento da prioridade absoluta do coletivo sobre o individual. O indivíduo
pode ser sacrificado, sem qualquer limite, em prol do interesse coletivo,
considerando Maquiavel ser tal perfeitamente ético… se resultar! Esta noção
veio a ser desenvolvida amplamente, designadamente pela corrente materialista,
nos séculos XIX e XX e, neste último século, temos visto várias consequências
da sua aplicação. Adiante, que a companhia não é das melhores…
Descartes retoma o
conceito de que a Ética constitui a realização da Sabedoria, suficiente para a
Felicidade, a qual é por ele considerada “a melhor existência que um ser humano
pode ter esperança de alcançar”.
Para ele, a Ética
assenta em dois pilares essenciais: a Virtude e a Felicidade, aquela entendida
como uma disposição da vontade para efetuar escolhas de acordo com o juízo da
Razão sobre o Bem, esta singelamente entendida como a tranquilidade. A noção
cartesiana da ética redunda assim na compatibilização das visões socrática,
aristotélica e platônica sobre o tema. O Renascimento na sua mais evidente
expressão…
A obra-prima de Baruch
de Spinoza tem para nós, maçons, o sugestivo título de A Ética demonstrada à
maneira dos geômetras. Está dividida em cinco partes, nas quais trata
sucessivamente do Ser, do Homem, dos Afetos, da Servidão humana e da Liberdade.
Para Spinoza, a razão e os afetos não se opõem. A própria razão é um afeto, um
desejo de encontrar ou criar as oportunidades de alegria na vida e evitar ou
terminar as circunstâncias causadoras de tristeza.
Em suma, a Razão é ela
mesma um afeto tendente à Felicidade. A ética de Spinoza é a ética da alegria,
só ela nos conduz ao amor e à felicidade.
Para ele, a Ética não
resulta do altruísmo, bondade ou solidariedade, mas da própria condição
natural. Está mais próximo dos clássicos gregos do que de Santo Agostinho. Tal
como aqueles, para Spinoza a Felicidade é o objetivo último da ação humana.
Locke acreditava que a
Ética tem que ser demonstrada racionalmente, pois nenhuma regra de conduta
moral é válida se a sua necessidade não for fundamentada através da Razão. Para
ele, os principais fundamentos (racionais, obviamente) das regras morais são a
busca da Felicidade e o propósito de evitar a deterioração da Sociedade.
A propósito de Razão, o
teórico da Razão Pura, Immanuel Kant, relativamente ao conceito de Ética não
estabelece nenhum bem ou fim que tenha de ser alcançado e não se pronuncia
sobre o que temos de fazer, apenas sobre como devemos atuar.
Para ele, o que
importa é a intenção, a coerência entre a Lei e a ação, não o fim. Situa-se
claramente nos antípodas do florentino Maquiavel. Se alguma aproximação lhe detectamos
é ao pensamento de Sócrates.
Nietsche rejeita uma
visão moralista do mundo e atribui os valores éticos ao campo das emoções, não
da Razão. Para ele, o Homem Ético é aquele que não reprime os seus instintos,
desejos e emoções, concretizando-os em atos libertários. Dificilmente se
poderia conceber um conceito mais individualista do que este!
Habermas considera que a
Ética depende da valorização da Diferença e da Liberdade Humana, impondo que a
Diferença seja equiparada à normalidade. A Ética projeta-se em valores como a
Vida, a Solidariedade, a Cooperação, a Amizade.
Finalizo esta excursão
por vários Mestres da filosofia com a referência a Peter Singer, filósofo
australiano da Ética Prática. Para Singer, em termos de aplicação prática,
Ética e Moral são sinônimos e enfaticamente ele chama a atenção para algo de
que pudemos aperceber-nos ao longo do enunciado de pensamentos com que os venho
maçando: a Ética NÃO É um conjunto de proibições.
Como ele cristalinamente
ilustra, mentir em circunstâncias normais é um mal – mas no caso de uma pessoa
vivendo na Alemanha nazi a quem a Gestapo batesse à porta à procura de judeus,
mentir negando a existência de judeus escondidos nas águas-furtadas da casa era
o eticamente adequado…
Para Singer, Ética é uma
perspectiva que concede à Razão um papel importante nas decisões e os juízos
éticos devem ser formulados de um ponto de vista universal, isto é, os
interesses individuais ou de grupo não valem mais do que os outros interesses
de outros indivíduos ou de outros grupos. O juízo ético é aquele que procura,
em relação a cada problema, determinar a solução ou a conduta que possibilite o
maior bem, entendido como a maior e melhor satisfação das necessidades possível
– ou seja, a maior Felicidade!
Feita esta resenha do
pensamento de vários Mestres, verificamos que, na diversidade dos seus
pensamentos, podemos detectar uma linha comum, talvez um pouco surpreendente: a
Ética tem essencialmente a ver com a busca e o anseio humanos pela Felicidade!
As normas, as imposições ou proibições de condutas que normalmente associamos à
Ética não são o cerne do conceito, mas as condições para a viabilização dessa
busca humana da Felicidade.
Entendemos assim
facilmente porque há em diferentes épocas e latitudes tão diferentes conceitos
de Ética: porque as condições de vida e de enquadramento social de cada época e
latitude tornaram diferentes as formas de busca e de tentativa de concretização
do humano anseio pela Felicidade.
Sendo assim,
compreende-se que é normal a primeira afirmação que hoje fiz: cada um dos
presentes terá uma diferente noção de Ética porque, embora de forma porventura
subtil, a Felicidade que cada um busca é diferente da dos demais, é própria,
pessoal e intransmissível.
Mas, sendo assim, que
denominador comum poderei eu sugerir hoje, aqui e agora, sobre Ética, de forma
que seja aceitável para os apressados espíritos de hoje, inundados de
informação tão abundante que nem sequer logramos, por vezes, sobre ela incidir
um juízo verdadeiramente crítico?
Sem grande preocupação
de rigor científico – por evidente e confessada falta de capacidade para tal -,
mas procurando ilustrar o conceito de uma forma sugestiva, gostaria de vos
propor um entendimento de Ética que julgo ser uma noção completa, isto é, com
princípios, meios e fins:
ÉTICA É O CONJUNTO DE
PRINCÍPIOS QUE NORTEIAM A DETERMINAÇÃO E UTILIZAÇÃO DOS MEIOS À NOSSA
DISPOSIÇÃO PARA ATINGIRMOS OS FINS A QUE NOS PROPOMOS.
Atenção que Ética não é
uma declaração de princípios. Ética é a utilização dos princípios por cada um
adotados. Um solene conjunto de princípios, por muito bonitos ou consensuais
que sejam que serve apenas para eles serem invocados, declarados, apregoados,
mas que na realidade não são utilizados, é como a coleção de porcelanas da
minha tia-avó: só serve para estar exposta na sala e ser exibida às visitas!
Não passa de bacoca
manifestação de vaidade e fútil exibição de pretensas preciosidades,
alegadamente valiosas, mas realmente inúteis! Em nada e para nada releva ou
interessa apregoar ou invocar ou proclamar solenes princípios se estes não
passarem de palavras soltas em ocasiões julgadas oportunas e não forem
efetivamente praticados.
A Ética não está nos
princípios declarados, está nos princípios praticados. Não está nas palavras,
está nos atos. Não está nos consensos formados, está nas cooperações levadas a
cabo. Não está nas intenções, está nas concretizações. Não está nas
justificações, está nas consequências. Não está dentro de cada um de nós, está
no que cada um de nós projeta para o exterior de si.
A Ética não é um
conceito estático, é uma aplicação dinâmica. O Homem não É ético.
O Homem
sempre, em cada momento, renova-se e FAZ-SE Ético, em cada decisão, em cada
escolha, em cada ato.
Só temos verdadeiramente
Valores, ou seja, Princípios, se os utilizamos SEMPRE para conformarmos os
nossos atos na concretização dos nossos objetivos (e sempre é sempre: quando
nos convém e principalmente quando não nos convém).
PRINCÍPIOS que
determinam os nossos MEIOS para atingirmos os nossos FINS – esta a noção de
Ética que considero adequada para todos.
E esta noção de Ética,
bem vistas às coisas, não é limitadora, é construtora. Construtora da nossa
personalidade e da nossa conduta. Construtora da nossa imagem de nós perante
nós próprios. Construtora do conceito que granjeamos dos outros em relação a
nós. Construtora do que somos, do que fazemos, do que conseguimos. Construtora
do sentido das nossas vidas. Construtora das nossas vitórias, mas também
construtora da superação dos nossos desaires. Construtora da nossa Vida, do
nosso lugar na Vida e da nossa legítima fruição da Vida. Construtora, em suma,
da nossa FELICIDADE.
Afinal os Mestres tinham
razão! Por isso os reconhecemos como tal!
Rui Bandeira
9/5/2015
Colóquio da GLFP – A Maçonaria no século XXI
Painel Desafios éticos no Mundo atual
9/5/2015
Colóquio da GLFP – A Maçonaria no século XXI
Painel Desafios éticos no Mundo atual
Bibliografia
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consultado em 8/4/2015.
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, consultado em 8/4/2015.
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, consultado em 8/4/2015.
https://sentadonalua.wordpress.com/2012/07/12/a-etica-de-santo-agostinho-frente-a-etica-aristotelica/,
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http://afilosofiadaintegracao.blogspot.pt/2009/03/etica-de-kant.html
, consultado em 11/4/2015.
Peter Singer, Ética
Prática, consultada em 11/4/2015, em
http://docente.ifrn.edu.br/edneysilva/etica-pratica
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