A Maçonaria encarna uma via
iniciática por meio da qual ainda é possível, num Ocidente obscuro e enfermo,
vincular-se efetivamente à Tradição Unânime e Primordial.
Trata-se de uma Arte na qual
foram purificados e endossados símbolos, ritos e mitos de ordem cosmogônica que
reis, guerreiros e homens de oficio reconheceram, desde tempos imemoriais, como
suportes para a realização metafísica.
O neófito iniciado nos mistérios
da Arte Real recebe uma influência espiritual que opera sua regeneração
psíquica, isto é, seu renascimento ou tomada de consciência de si mesmo como
homem verdadeiro.
Este despertar corresponde
simbolicamente a um percurso de um ponto de uma circunferência até seu centro,
e também a uma conta ao inverso, que parte do denário e termina na Unidade,
princípio gerador da multiplicidade implícita na década.
Acabada a viagem pelos pequenos
mistérios, começa, sem solução de continuidade, o trânsito pelos mistérios
maiores, a ascensão pelo eixo imóvel em torno ao qual gira a roda do porvir, ou
raio que, atravessando o Sol, traça a via que devolve o ser ao seio do Não-Ser.
GEOMETRIA, NÚMERO E
COSMOGONIA
O profano que solicita ser
admitido na Franco-Maçonaria, no Rito Escocês Antigo e Aceito, redige um
testamento filosófico na Câmara de Reflexão ante os três princípios alquímicos.
Três zonas de seu corpo são desnudadas antes de ser conduzido, privado da
visão, até a porta do Templo.
Tendo sido introduzido na Loja,
realiza nela três viagens, e recebe por fim a Luz ao terceiro golpe do malhete
do Venerável Mestre. O ternário preside o início da edificação do templo
interior do maçom da mesma forma que a construção do Cosmos, do qual a Loja é
uma imagem perfeita.
As teogonias mais elevadas
consideram um ternário principial constituído por um princípio superior ou Ser
puro (na tradição hindu, Ishwara ou Apara-Brahma; na tradição
extremo-oriental, o “Grã Extremo” ou Tai-ki) e a primeira das dualidades
surgida da polarização da Unidade (Purusha e Prakriti na
tradição hindu; o Céu, Tien, e a Terra, Ti, na tradição
extremo-oriental).
O Ser ou Unidade transcendente,
no seio do qual se acham indissoluvelmente unidas as duas polaridades do
binário principial anteriormente a toda diferenciação, pressupõe outro
princípio: o Brahma neutro e supremo (Para-Brahma ) do hinduísmo,
o Wu-ki do taoísmo, o Não-Ser ou Zero metafísico do qual nada pode
ser predicado e que contém ao Ser que é sua afirmação.(1) Segundo a
Cabala, o Absoluto, para manifestar-se, se concentra em um ponto infinitamente
luminoso, deixando as trevas ao seu redor.
Esse ponto luminoso é o Ser no
seio do Não-Ser, a Unidade que afirma o Zero e da qual emanam as manifestações
indefinidas do Ser.(2)
Assim como o um é o símbolo
aritmético da Unidade, o ponto sem dimensões é a imagem geométrica do Ser. Sua
determinação no seio do Não-Ser é análoga à que uma ponta de um compasso
estabelece ao apoiar-se em uma folha de papel.
Se produz a polarização do
um-ponto-Ser-Unidade no binário ao apoiar a segunda ponta do compasso na folha.
Os dois pontos determinados sobre o papel estão vinculados entre si por meio do
compasso, e o segmento de reta que une ambos os pontos é a projeção
unidimensional de tal vínculo sobre o plano geométrico. Aritmeticamente,
pode-se simbolizar a polarização da Unidade como o produto de dois números
inversos entre si:
1 = n x 1/n
sendo n um número inteiro qualquer. O produto n x 1/n não é
distinto da Unidade; a dualidade aparece só ao considerar-se separadamente os
dois elementos complementares de tal produto, indiviso no interior da Unidade.
Outra imagem numérica equivalente é a obtenção do dois pela soma da Unidade com
seu reflexo, que é ela mesma:
1 + 1 = 2
Esta operação simboliza de uma
maneira nítida a gênese do binário pela Unidade, e mostra que não há nada na
natureza deste que seja diferente da Unidade geratriz.
A consideração distintiva da
Unidade e da dualidade produz o ternário:
2 + 1 = 3
Geometricamente, o ternário
surge ao se traçar arcos de circunferência centrados nos dois pólos do binário
e cortá-los entre si, definindo um terceiro ponto ou vértice. Se a abertura do
compasso é igual à distância entre os extremos do binário, se obtém, ao unir os
vértices dois a dois mediante segmentos de reta, um triângulo equilátero que de
novo evoca a não-diferença entre a Unidade e suas produções duais.
A proporção áurea é uma das expressões mais
sintéticas do caráter interior do ternário formado pela Unidade no binário.
Esta proporção, à qual na antiguidade grega se designava com a vigésima
primeira letra do alfabeto (21 = 2 + 1 = 3), se obtém ao dividir um segmento em
duas partes, de maneira que o comprimento da parte menor esteja para a da maior
como esta para o comprimento total do segmento dado.
Se diz
que a parte menor é segmento áureo da
maior e que a maior o é do segmento inicial. A proporção áurea é a quantidade
incomensurável resultante do quociente entre o comprimento do segmento dado e a
de seu segmento áureo. Esta última se determina geometricamente desenhando um
triângulo retângulo que tenha por catetos o segmento dado e sua metade, e restando
à hipotenusa o cateto menor.
A proporção áurea é a única
proporção continua de três termos (3) que se pode construir com só dos
termos distintos. O segmento e suas duas partes são “três que são dois, que são
um”, o símbolo de uma diferenciação entre a Unidade percebida como objeto e o
preceptor de tal objeto contido ambos no reconhecimento ininterrupto de uma
Unidade omnicompreensiva. Por outro lado, tal diferenciação prefigura as
dimensões primeiras e segundas da manifestação no seio da Unidade, o qual é
refletido pela propriedade geométrica de que, se a comprimento do segmento dado
é a unidade de medida, as medidas de suas partes em proporção áurea resultam
ser uma o quadrado da outra (ou, reciprocamente, esta é a raiz daquela). (4)
A Unidade
adicionada ao ternário produz o quaternário. O Tao te Kingdiz: “O Tao deu
a luz ao Um, o Um deu a luz ao Dois, o Dois deu a luz ao Três, o Três deu a luz
às inúmeras coisas”(5), pelo que, nas palavras de René Guénon, “o quatro,
produzido imediatamente pelo três, equivale de certo modo a todo o conjunto dos
números, e isso porque, desde que se tenha o quaternário, se tem também, pela
adição dos quatro primeiros números, o denário, que representa um ciclo
numérico completo: 1 + 2 + 3 + 4 = 10, que é, como já dissemos em outras
ocasiões, a fórmula numérica da Tetraktys pitagórica”. (6) o
quatro é o símbolo da Unidade que se manifesta; é o número que marca a
manifestação, a qual se desdobra em um marco de referência quaternário composto
de um espaço tridimensional e o tempo (3 + 1 = 4 ) no qual todos seus elementos
se acham regidos pela lei da tétrada: quatro pontos cardeais, quatro estações
do ano, quatro idades do homem.
A
representação geométrica do quaternário em seu aspecto estático é o quadrado, e
em sua vertente dinâmica, a cruz. A complementaridade de ambos os símbolos fica
patente ao inscreverem-se as figuras em uma circunferência: uma e outra
resultam de unir os quatro vértices circunscritos mediante segmentos retos das
duas maneiras que é possível fazê-lo, cada um com seu contíguo ou então cada um
com seu oposto.
Os braços
da cruz são como os raios de uma roda que, dando-lhe rigidez, afirmam seu giro
em torno de seu eixo. Ao contrário, os lados do quadrado são como limaduras
ou planos da roda que detêm seu giro e a fixam.
O traçado
do quadrado se efetua a partir da cruz unindo-se os extremos contíguos desta. A
cruz se constrói no interior da circunferência, desenhando-se um diâmetro e sua
perpendicular. Isso nos devolve à consideração de que tudo parte de um Centro único,
que o quaternário manifesta.
O
tetraedro é a figura geométrica que expressa o quaternário na
tridimensionalidade. Sua projeção vertical sobre o plano ao qual pertence sua
base é um triângulo equilátero cujas três alturas convergem em seu centro, reflexo
da cúspide do poliedro. O ponto afirmado no seio do triângulo e acima do
tetraedro são imagens do Verbo manifestado, pelo que se diz que o quatro é o
número da Manifestação.
Na Loja,
o ponto mais alto é o olho do Delta luminoso, ou a iod do
Tetragrama divino, ambos os símbolos do grande Arquiteto do Universo para cuja
glória trabalham os maçons. (7) O quaternário também é revelado pela
planta em forma de quadrado longo do Templo maçônico e do pavimento
mosaico, cujas dimensões são igualmente significativas (comprimento duplo ou
triplo que a largura; retângulo de litígios de largura 3 e
comprimento 4; comprimento e largura em proporção áurea, etc.).
O giro da
cruz ao redor de seu centro – engendrando a circunferência que, em união com
seu centro, representa o denário – é a expressão geométrica da circulação
do quadrante que a Tetraktys pitagórica simboliza
aritmeticamente (1 + 2 + 3 + 4 = 10). A cruz resolve exatamente o problema
inverso da quadratura do círculo, dividindo sua área em quatro partes
iguais, o que se pode expressar numericamente permutando os termos da igualdade
anterior (10 = 1 + 2 + 3 + 4).
(8) Para
quadrar o círculo com um quadrado cuja área seja igual à do círculo dado, se
requer a intervenção do quinário: deve-se inscrever, em primeiro lugar, um
pentágono no círculo; logo, um segundo pentágono cujos vértices sejam os pontos
médios dos arcos de circunferência limitados por vértices adjacentes do
primeiro pentágono; e, por último, outros dois pentágonos cujos vértices se
acham pela bissecção dos arcos demarcados respectivamente por um vértice do
primeiro pentágono e o vértice mais próximo do segundo.
Obtêm-se
assim quatro pentágonos cujos vinte vértices, que podemos numerar
correlativamente, se distribuem uniformemente ao longo da circunferência. As
retas que passam por quatro pares de vértices tais como o segundo e o quinto, o
sétimo e o décimo, o duodécimo e o décimo quinto, e o décimo sétimo e o
vigésimo delimitam um quadrado cuja área é muito aproximadamente a do círculo
dado.(9)
O Aprendiz maçom que ingressa em
Loja toma assento na coluna do Setentrião. Diz-se que é a região menos
iluminada do templo, apta para quem acaba de iniciar suas andanças pela via do
Conhecimento e que “ainda não é capaz de suportar uma grande luz”.
Procedente do âmbito da
manifestação total do Ser, simbolizada pelo denário e pela roda ou o círculo,
começa seu caminho de retorno à Unidade, isto é, ao centro de si mesmo
iluminando seus passos com uma ainda débil claridade interior. Como o
personagem do nono arcano do Tarot, lanterna na mão, avança lentamente, com
paciência e em solidão, regressando do nove ao oito, do oito ao sete…
Autor:
Marc Garcia
Tradução:
Sérgio K. Jerez
Notas
1
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René Guénon, La Gran Tríada,
cap. II. Ed. Obelisco, 1986.
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2
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3
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Relação proporcional de três quantidades das quais uma é o termo
médio, da forma a/b = b/c.
Na proporção áurea, a é
o comprimento do segmento dado,b o
de seu segmento áureo e c o
da parte menor.
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4
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Ver Robert Lawlor, Geometría Sagrada,
cap. V. Editorial Debate, 1993. A “unidade de medida” a que nos referimos é
um comprimento eleito por convenção como escala com a finalidade de poder
medir, com relação a ela, os demais comprimentos. Tratando-se de uma
magnitude continua, é divisível indefinidamente a diferença da unidade
aritmética, a qual é necessariamente indivisível e sem partes (ver René
Guénon, Sobre el Número y la Notación Matemática.
Cuadernos de la Gnosis nº 4, págs 25-26. Ed. Symbolos, 1994). Por outro lado,
se na equação da nota 3 se atribui um valor 1 ao comprimento a, c resulta ser o quadrado de b, e reciprocamente, b a raiz quadrada de c.
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5
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Lao Tse, Tao te King, XLII. Versião de
John C. H. Wu. Editorial Edaf, 1993.
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6
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René Guénon, os Principios do Cálculo
Infinitesimal, cap. IX
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7
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Ver Sete Maestros Masones, Símbolo, Rito, Iniciación. La
Cosmogonía Masónica, cap. 13. Ed. Obelisco, 1992.
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