Atualmente a maçonaria
tupiniquim, infelizmente, tem um pensamento corrente de que duas de suas três
classes de maçons não têm direito a fala e muito menos a escrita (no caso
Aprendizes e Companheiros).
Acredito que este
pensamento tenha raiz em um modelo antiquado de hierarquia, e para tratar o
assunto traremos hoje um texto “num” formato nunca visto antes por essa área
desolada da internet. Para tanto eu contei com a ajuda de um Grande Irmão que
trabalha e vive na terra da Rainha.
No famoso grupo de
estudos sobre “ciências maçônicas” (me superei aqui) Ritos e Rituais eu
levantei uma pergunta direcionada ao Irmão Felipe Côrte Real de como os
ingleses tratam os trabalhos (textos, monografias, artigos, peças de
arquitetura e etc.) que são confeccionados por irmãos aprendizes e
companheiros, confira agora a pergunta e a resposta na íntegra.
Cloves Gregorio – do
blog Maçonaria Tupiniquim
Pergunta
Algo interessante a
perguntar para você sobre a maçonaria na Inglaterra.
Aqui no Brasil
infelizmente há uma cultura de não se levar a sério o estudo e artigos de
Irmãos aprendizes e companheiros. O que na opinião de todo mundo aqui
(acredito) é uma grande idiotice.
Enquanto peças
extraídas do livro de Rizzardo são altamente elogiadas, peças com pesquisas
dignas de cunho acadêmico são sumariamente descartadas e ainda ganham a
alcunha de “você pesquisou na internet, basta o seu ritual”.
Quando você
confeccionou o artigo “Protect the integrity”: regularidade no discurso
das relações maçônicas internacionais entre Brasil e Inglaterra
(1880-2000), o mano era companheiro, porém o mano é doutorando em História e
como o tal sabe fazer pesquisa e escrever sobre com maestria. Como é essa
percepção na Inglaterra?
Resposta
Meu irmão Cloves, a
tua pergunta me é tão cara e possui tantas camadas que merece uma resposta de
igual complexidade, por isso escolho esta carta aberta ao nosso grupo para
respondê-la.
Sou DeMolay desde 2000
e maçom desde 2012. Escolhi entrar tardiamente na maçonaria, não sendo,
felizmente, por falta de convite. Então, como os irmãos DeMolays podem
confirmar, tenho conhecimento dos maçons brasileiros não somente a partir de
2012. Logo, eu sabia muito bem no que estava me metendo.
A cultura de
desmerecer aprendizes e companheiros, a meu ver, está ligada ao pernicioso
“classismo” que podemos testemunhar no dia a dia.
O irmão sabe bem
que a cultura escravocrata e patriarcal está incrustada em nossa sociedade.
Como a maçonaria brasileira não recruta seus membros em Marte, ou na
Suíça, acabamos por ter nas lojas, e nas obediências, um microcosmo que retrata
o Brasil.
Ser “superior” e
destratar ou desmerecer “quem está abaixo” é tão natural para a nossa cultura
quanto falar sobre o tempo aqui na Inglaterra.
Em muitas lojas,
a relação entre aprendizes, companheiros e mestres reflete isso.
Então, claro,
como o irmão bem ressaltou, a maioria dos maçons que merecem essa alcunha
irá concordar que isso é, no mínimo, uma subversão do espírito que anima a
maçonaria.
O Rizzardo da Camino,
entre outros escritores “maçônicos”, merece um artigo crítico (e me refiro aqui
ao sentido acadêmico da palavra) sobre suas obras. Acho que tais
escritores possuem grande importância, porém trazem uma interpretação demasiado
mística da maçonaria. Tal interpretação não me agrada como maçom e
tampouco como acadêmico.
Essa mistificação, ou
“beatificação”, promovida por parte dos maçons brasileiros pode ser vista na
postura sectária com a qual as potências e os ritos são vistos e
comparados.
A prova de que isso é
estrutural e estruturante da nossa sociedade é que nas universidades
brasileiras a mesma coisa acontece: se você é da linha de pesquisa X, deve
se opuser sistematicamente aos fulaninhos da linha de pesquisa Y.
Claro que isso é
suavizado pelo nosso “deixa disso” ou como escreveu Sérgio Buarque de Holanda,
pela cultura do homem cordial. Porém, no fim do dia, os ritos e as
potências continuam sendo “igrejinhas”, com seus teólogos, padres e
devotos.
É normal que muitos
maçons brasileiros enalteçam tais interpretações mistificadoras, pois estas vão
ao encontro da nossa interpretação religiosa do mundo. Basta observarmos
quais assuntos são “tabu” ou “polêmicos” no Brasil, todos eles são assim vistos
por causarem desconforto em relação a valores que são noves fora,
religiosos. É daí também que vem parte da desconfiança quanto ao conhecimento
acadêmico, pois este sempre terá por missão fazer uma leitura crítica, ou
a contrapô-lo, da realidade, seja esta leitura partindo da Física, da
Sociologia, da Química ou da História.
Essa resistência ao
uso de trabalhos acadêmicos também está ligada a um receio de subversão da
ordem social. Há certa cota para self-made ma no Brasil. A
trajetória deste prosélito deve ser balizada por uma série de pontos de vista
específicos para que este se ajuste perfeitamente entre seus novos pares,
de modo a não causar nenhuma “desordem” ou “desconforto”.
Não é a toa que a
hierarquização dos saberes funciona em nosso país com em nenhum outro,
respeitamos as profissões que estavam disponíveis durante o Império (Direito,
Medicina e Engenharia), sendo as outras vistas com desdém e/ou suspeição.
Algumas dessas profissões fora do eixo ascendem a uma categoria melhor por
serem bem pagas.
O “tu és o quanto tu
ganhas ou o “teu contracheque designa o quanto sabes” são dois exemplos de
regras veladas da nossa sociedade que no âmbito das lojas, muitas
vezes, podem ser percebidas.
Se somente o ritual
basta para fazer uma peça de arquitetura, significa que está sendo pedida uma
eisegese do que ali está escrito. Isso implica, na prática, supor que o ritual
é “ahistórico”, que ninguém o escreveu e se o fez, o fez em tempos
“imemoriais”. Creio que nenhum maçom sério crê nisso. Crê-se, está
transformando a maçonaria em religião ao exigir um credo ut
intelligam (eu creio para que possa entender).
A minha pesquisa sobre
a maçonaria é feita como acadêmico, sempre.
Tenho peças de
arquitetura escritas para a minha loja no Brasil e somente essas são
feitas com um cunho maçônico. Então o fato de ser aprendiz, companheiro, mestre
ou “past GADU” não faz a mínima diferença quando se estuda a maçonaria
academicamente. Inclusive, alguns dos melhores acadêmicos na área não são
maçons.
Isso porque o segredo
da maçonaria (a meu ver e na visão de outros acadêmicos mais afamados)
está na performance do ritual e na experiência subjetiva de cada maçom. Fora
isso, tudo está publicado e acessível, principalmente se você for um
pesquisador profissional.
Na Inglaterra a
maçonaria é uma fraternidade com um caráter muito semelhante aos clubes,
claro, com suas trezentas especificidades. A maçonaria é vista aqui, por grande
parte da população, como algo secreto, oculto e etc.
Porém, a própria UGLE
está se encarregando de desmistificar esta visão, como o irmão já deve ter
percebido através de séries para a televisão como Inside the Freemasons.
Claro que o meu “eu” adolescente, DeMolay empolgado e candidato a
candidato a maçom, não gosta muito dessa ideia, pois ele começou a gostar disso
pelo caráter de mistério.
Porém o
adulto, maçom e acadêmico, vê com bons olhos essa iniciativa, pois não há
como a maçonaria continuar relevante no século XXI sem que haja a promoção
de mudanças substanciais. Do contrário, viraremos, em questão de anos, um
grupo folclórico. Alguns diriam que já somos.
Pessoalmente, a grande
diferença aqui nessa relação entre maçonaria e academia é o fato de ser
respeitado por ser um doutorando (PhD Candidate). E não digo somente entre
os maçons, mas socialmente. A questão de as pessoas entenderem que você está
abdicando, sim, de uma série de coisas para colocar mais um tijolinho na
grande obra que é a construção do conhecimento e que esta é a sua profissão, é
algo inenarrável.
Nada de perguntas
com “Você SÓ estuda?”, a qual eu sempre quero responder “Não, eu também
consigo dar um mortal para trás enquanto canto o Hino da Bulgária”.
A UGLE me trata com a
maior deferência, já que estou me especializando em uma de suas coleções. O
respeito dos funcionários e das diretorias é ímpar. Identifiquei-me como
maçom para dois dos irmãos que lá trabalham, mas depois de meses e totalmente
por acaso.
Grande parte dos
funcionários da Library and Museum of Freemasonry não são maçons e
podes ter certeza mano Cloves, eles colocam qualquer “sabão” (aquele que sabe
tudo, segundo grande Maurício de Sousa) no bolso quando o assunto é maçonaria.
O que me enche de
esperança é essa geração nova, que em certa medida também é a nossa, que está
vindo cheia de perguntas e curiosidade.
Embora tenhamos
de reconhecer os vários irmãos que por muito tempo lutaram e lutam para que a
maçonaria seja algo mais que aventais e medalhinhas. “Porque sim”, ou
“porque sempre foi assim” ou “porque fulano disse”, nunca serão respostas para
nada, muito menos para a maçonaria.
Em minha opinião,
como maçom, o que falta em parte da maçonaria brasileira é autocrítica, o
famoso “se enxergar”. Falamos tanto em perfeição, temos nomes tão pomposos
para tudo que, eventualmente, acreditamos que estamos num grupo mega especial
que em nada reflete ou promove a situação extra-loja.
Poderia falar num
tom hierático que o que falta é humildade e blá blá blá, porém creio que só
falta bom senso e coerência, mesmo. A maioria das discussões que leio ou
ouço são incoerentes ao ponto da esquizofrenia, sem nenhuma definição
conceitual clara e principalmente, com modelos de pesquisa ou de
formulação de problema dignas do século XIX (ou nem isso).
Eu sei que me alonguei
mano Cloves, mas as suas perguntas são sempre inteligentes e cheias de nuances,
então resolvi tomar um tempo para responder adequadamente ao menos uma.
Um tríplice e fraterno
abraço do seu irmão,
Felipe Côrte Real de
Camargo
Fonte: Maçonaria Tupiniquim
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