Não basta aprofundar. Triste
sabedoria a que consiste em retrair-se em si mesmo e desinteressar-se do mundo
exterior. A imersão nas trevas onde se desvanecem as aparências não é uma meta,
é apenas uma etapa do itinerário que o Iniciado é obrigado a seguir.
Se descermos, é para subir outra vez,
e o nível que podemos atingir na subida depende justamente das profundezas que
soubemos sondar. Se fosse possível penetrar até o próprio fundo do abismo
infernal, seguramente, poderíamos chegar de rebote até o céu, pois a força
ascensional está na razão direta da intensidade da queda.
O espírito superficial não sabe
descer nem subir, apegado ao solo, há de seguir suas ondulações, sem poder
chegar a concepções profundas nem abraçar amplos horizontes.
Muito bem: o que, antes de tudo,
distingue o Iniciado é a profundidade de seu pensamento, como também o limitado
de suas visões.
Livre já de todas as apreciações
rasteiras do profano, deve chegar a compreender o que existe, tanto por baixo,
quanto por cima das coisas que percebe na vida corrente, e as primeiras provas
iniciáticas fazem precisamente referência a esse duplo campo de exploração.
Ao sair da tumba onde se encerrou
para morrer de livre e espontânea vontade, o candidato sobe até o cume do monte
evangélico e dali pode divisar todos os reinos da Terra. Nem o acompanha o
Diabo, nem lhe promete a posse do mundo, se consente em adorá-lo. Para quem
chegou a tais alturas, a tentação está bem em fugir de todo o material. Mas
este perigo não pode ameaçar ao futuro iniciado e, pela prova do ar, volta de
repente à realidade positiva.
Após descer tão profundamente como
soube, para logo alcançar os mais sublimes cumes, deve voltar ao nível normal
de equilíbrio, capacitado já, tanto por sua queda, quanto por sua ascensão,
para apreciar rigorosamente o mundo, teatro de sua ação iniciática.
As profundezas complementam-se com as
abstrações geradoras das coisas. No segundo Fausto, Goethe nos fala das
terríveis divindades que chama de as Mães. Apesar de sua dialética dissolvente,
Mefistófeles não se atreve a aproximar-se destas eternas criadoras de formas;
nem as rodeia o espaço, nem as afeta o tempo.
Em seu isolamento coletivo, concebem
as imagens criadoras, os arquétipos de tudo quando se vai construindo. Por
intermédio dessas deusas, o Ser brota sem descontinuidade da matriz tenebrosa
do Nada. O pensador desejoso de aprofundar pode fazer considerações acerca
desse tema que a sutil poesia de Goethe lhe apresenta.
De outra parte, o inferno não é, em
Iniciação, outra coisa que o caminho do céu. Quem sondou o Nada descobre ali
mesmo o Todo. Quando descemos até o próprio fundo do abismo de nossa
personalidade, chegamos a descobrir nela a personalidade que atua no Universo,
então, somos capazes de nos colocar acima de todas as contingências, para
considerar as coisas de um ponto de vista diferente: o da potência que governa
o mundo. Para ver realmente as coisas do alto, é necessário substituir-se, em
espírito, ao próprio Deus.
E não digam que isso é ímpio; nada
pode ser tão saudável para nosso ser moral como a ginástica mental da
sublimação filosófica preconizada pelos Hermetistas.
Segundo o sistema alegórico, o
indivíduo que há de ser objeto da Magna Obra deve ficar encerrado em um ovo.
Ali entra em putrefação e, por fim, chega à cor negra, representativa da morte
iniciática do candidato. De outra parte, a putrefação libera o sutil que se
desprende do grosseiro e sobe até o céu deste mundo em pequena escala
simbolizado pela matriz hermeticamente fechada com a massa que usa o
alquimista.
Nas alturas, não se faz sentir a ação
do fogo central (infernal), e as evaporações se condensam, para cair em forma
de chuva sobre o cadáver do indivíduo. Este último experimenta de tal sorte,
uma série de lavagens, graças às águas em suas alternativas evaporação e
condensação, até que, ao término das abluções, apareça como testemunho a cor
branca.
Do mesmo modo que desceu tão-só para
subir mais alto logo depois, assim mesmo, o candidato sobe para cair outra vez
em seu campo de atividade. Certos mitos antigos dão a entender que o sábio não
deve iludir sua missão terrena. Como mortal, não deve desdenhar a Terra nem tem
direito a burlar suas leis.
Ainda que divinizado em duas terças
partes (e, por conseguinte, muito adiantado em Iniciação), Gilgamés, o herói
caldeu, teve de regressar a Ourouk para voltar à tarefa que abandonou no afã de
conquistar a imortalidade. Podemos aspirar ao sublime e fugir, por um momento,
aos vínculos da matéria, mas nosso campo de ação é a Terra, e a ela devemos
voltar.
Tal é a moral comum a todos os mitos
de ascensão. Os de Adapa e de Etana são muito característicos desse ponto de
vista.
Em sua qualidade de favorito de Ea,
deus da Suprema Sabedoria, Adapa beneficiava-se de um vasto entendimento,
todavia, não da Vida Eterna.
De outra parte, Adapa alimentava a
cidade de Eridou com cereais, bebidas e peixes. Um dia, enquanto pescava o
vento sul arremeteu-se contra sua embarcação, afogando o protegido de Ea que,
lutando, sem embargo, conseguiu destroçar as asas do vento inimigo. Logo, Anou,
rei do céu, deu-se conta de que já não soprava o vento Sul e, indagando a razão
disso, soube da façanha de Adapa e decidiu castigá-lo.
Chamado a comparecer à sua presença,
Adapa encaminha-se ao céu e chega à porta, cuja entrada guardam Tammouz e
Gishida. Estas duas divindades o acolhem com benevolência, e prometem-lhe
interceder em seu favor junto a Anou, advertindo-o de que o deus lhe oferecerá
um alimento e uma bebida de morte que Adapa deverá recusar.
Durante seu interrogatório, sabe
atrair os favores de Anou, e o deus, em seu desejo de conceder-lhe a
imortalidade, oferece ao benfeitor de Eridou um alimento e uma bebida de Vida.
Mas Adapa atém-se à advertência recebida que sabe emanada de Ea; aceita
unicamente a roupa que lhe oferecem e deixa-se ungir com os sagrados óleos
antes de voltar à Terra seguido pela vista benevolente de Anou.
Quanto à ascensão de Etana,
verifica-se graças à amizade da águia socorrida pelo eleito dos deuses.
Predestinado a reinar sobre os homens
como pastor, Etana só pode encontrar no céu as insígnias de uma dignidade cuja
natureza mais parece mágica ou espiritual. Enquanto isso, Etana agita-se sobre
a Terra, inquieto com sua obra em perpétuo estado de gestação. Em suas
angústias, suplica a Shamash, o deus Sol, que lhe indique a erva de parto (de
realização), e Shamash responde-lhe: “Vá andando até chegar ao alto do monte”.
Etana obedece e, por fim, chega um
dia à borda de uma greta da montanha onde jaz, maltratada, uma águia com as
asas feridas por uma serpente, cuja prole havia devorado. Etana cuida do
pássaro ferido que recupera as forças e sara pouco a pouco. Ao cabo de oito
meses, a águia recupera por completo o uso de suas asas e propõe a Etana
levá-lo ao céu, para juntos prosternarem-se à entrada da porta de Anou, de Bel
e de Ea.
A águia conhece também a entrada da
porta de Sin, de Samash, de Adad e de Isthar . Teve ocasião de contemplar a
deusa em todo seu esplendor, sentada sobre seu trono com uma guarda de leões.
Etana aceita a proposta da águia e
abraça estreitamente a ave, ombros contra peito, flancos contra flancos, braços
estendidos sobre as penas das asas. Carregada de tal sorte com um peso que se
adere a ela exatamente, sem impedir nenhum de seus movimentos, a águia vai
subindo pelo espaço de horas e pergunta então a Etana que impressão lhe produz
a Terra: “Nem abarcando o mar parece maior que um simples pátio”.
Após duas horas de ascensão, a Terra
e o Oceano parecem-se a um jardinzinho rodeado por um riacho. Sobem mais ainda
e, transcorridas outras duas horas, Etana, apavorado, perde completamente de
vista a terra e o mar imenso.
Sua vertigem paralisa a águia que cai
durante duas horas, e continua a cair por outra e outra hora ainda. Por fim, a
águia estatela-se sobre o solo, e Etana parece transformado num rei fantasma.
Sob o ponto de vista iniciático, este
mito resulta muito instrutivo, apesar de parecer meio obscuro em razão de não
haver chegado íntegro até nós. Ainda que seja verdade que, para conquistar a
dignidade real, o iniciado deva transcender as baixezas humanas, seu reino não
é deste mundo, mas do “astral”, como o de Etana, o sonhador inquieto, que busca
a maneira de realizar seus ideais.
Tanto se trate de conquistar o céu
como de construir uma torre semelhante à de Babel, o simbolismo é o mesmo.
Também podemos ver como corresponde ao mito de Etana à chave do Arcano XVI do
Tarô, intitulada a Casa de Deus, que nos representa a queda de dois
personagens, um deles coroado.
Para a maior parte das pessoas, isso
alude às empresas quiméricas, como, por exemplo, a descoberta da Pedra
Filosofal que perseguiram os “sopradores”, esses alquimistas vulgares,
incapazes de penetrar o esoterismo das alegorias herméticas. Na realidade, a
queda é uma das provas previstas em iniciação, e o candidato é elevado tão-só
para cair de maior altura.
Ao atravessar o ar, em sua queda,
verifica-se a purificação; é outro homem inteiramente diferente quando chega a
terra, maltratado, sim, mas capaz de erguer-se para prosseguir seu caminho.
Para chegar a ser dono de si mesmo, é
de todo necessário apartar a atenção do mundo exterior, para internar-se na
noite da personalidade verdadeira; logo, depois de haver-se fechado em si
mesmo, há que sair outra vez por meio da sublimação iniciática. Além disso, não
estamos destinados a viver em nosso foro íntimo nem tampouco fora de nós
mesmos.
Uma tarefa nos espera neste mundo
objetivo do qual somos parte integrante e, para tanto, não podemos desaparecer
numa vida meramente interior e, por aí, absolutamente estéril. O Iniciado deve
descer a si mesmo, mas não perde tempo na contemplação de seu umbigo, ao modo
dos anacoretas orientais. Tampouco ignora o caminho da saída sublimatória, mas
tem muito cuidado em não permanecer no limbo e, ao contrário, abandona-se à
queda salutar.
A Iniciação não tem por objetivo satisfazer
curiosidades indiscretas. Não vem revelar os mistérios do inferno nem os do
céu; instrui-nos tão-só nos segredos da Magna Obra e limita-se a preparar, por
uma educação prática, obreiros dóceis às diretivas do G.’.A.’.D.’.U.’..
Graças à sua queda, o candidato criou raízes nas profundezas de seu ser;
sua força ativa estimula-o poderosamente e infunde-lhe a indomável energia dos
Ciclopes; depois, sem romper seus vínculos infernais, sumamente elásticos e
extensíveis, empreende a subida e vai roubar o fogo do céu, capacitando-se a
poder aplicar ao trabalho as potencialidades, tanto superiores quanto
inferiores. Esta união interna dos dois extremos estriba seu poder de Iniciado.
trecho do livro ideal iniciático
trecho do livro ideal iniciático