Conta uma lenda medieval que um pelicano saiu de seu ninho em busca de comida para os seus recém-nascidos filhotes. Não notou que por perto se escondia um predador, só esperando a sua ausência para atacar o ninho.
Mal o pelicano
desapareceu no horizonte, o danado atacou os coitadinhos, que ainda não tinham
aprendido a voar e nem a se defender.
O predador devorou a
todos, só deixando como sobra as pequeninas ossadas com as penas que mal
começavam a despontar. Quando o pelicano voltou ao ninho viu a tragédia que
ocorrera. Atirando-se sobre os restos dos corpos dos filhos, chorou horas e
horas, até que suas lágrimas secaram.
Sem mais lágrimas para
chorar pelos filhos mortos, começou a bicar o próprio peito, fazendo verter
sobre o corpo dos pequeninos o sangue que jorrava dos ferimentos que ele mesmo
provocara com aquela mutilação.
No seu desespero não
percebeu que as gotas do seu sangue, pouco a pouco iam reconstituindo a vida
dos seus filhos mortos. E assim, com o sangue do seu sacrifício e as provas do
seu amor, a sua família ressuscitara.
Provavelmente foi a
partir dessa lenda que o pelicano se tornou um símbolo de amor e sacrifício.
Durante a Idade Média eram vários os contos e tradições em que esse pássaro
aparecia como representação da piedade, do sacrifício e da dedicação á família
e ao grupo ao qual se pertencia. Essa terá sido também, a razão de os cátaros,
os rosa-cruzes, os alquimistas e outros grupos de orientação mística terem
adotado esse pássaro em suas simbologias.
Para os alquimistas o
pelicano era um símbolo da regeneração. Alguns operadores alquímicos chegaram
inclusive a fabricar seus atanores ― vasos em que concentravam a matéria prima
da Obra ― com capitéis que imitavam um pelicano com suas asas abertas.
Tratava-se de captar, pela imitação iconográfica, a mesma mágica operatória que
a ave possuía, ou seja, aquela capaz de regenerar, com seu próprio sangue, os
filhotes mortos.
Os rosa-cruzes, em sua
origem, na maioria, eram alquimistas. Daí o fato de terem adotado o pelicano
como símbolo da capacidade de regeneração química da matéria da Obra não é
estranho. E é compreensível também que em suas imaginosas alegorias eles tenham
associado essa simbologia com aquela referente ao sacrifício de Cristo, cujo
sangue derramado sobre a cruz era tido como instrumento de regeneração dos
espíritos, medida essa, necessária para a salvação da humanidade. Daí o
pelicano tornar-se também um símbolo cristão, representativo das virtudes
regeneradoras do cristianismo, da mesma forma que a rosa mística e a fênix que
renasce das cinzas.
Os popelicanos
Porém, o grupo que
mais contribuiu para que o pelicano se tornasse um símbolo místico por
excelência foram os cátaros. Os sacerdotes dessa seita, que entre os séculos XI
e XII se tornaram os principais opositores da Igreja Católica na Europa,
chamavam a si mesmos de “popelicans”, termo de gíria francesa formado pela
contração da palavra pope (papa) com pelican (pelicano). Significa,
literalmente, “pais pelicanos”, numa contra facção com os sacerdotes da Igreja
Católica que eram considerados os predadores da lenda (no caso uma serpente,
como conta Leonardo da Vinci em sua versão da lenda).
De certa forma, os
cátaros, com suas tradições místicas e iniciáticas, se tornaram irmãos
espirituais dos cavaleiros templários e antecessores dos rosa-cruzes e dos
maçons. Condenados pela Igreja Romana por suas idéias e práticas heréticas,
eles foram exterminados numa violenta cruzada contra eles movida pela Igreja em
meados do século XIII.
Os cátaros chamavam a
si mesmos de filhos nascidos do sacrifício de Jesus. Eles diziam possuir o
verdadeiro segredo da vida, paixão e morte de Jesus, que para eles não havia
ocorrido da forma como os Evangelhos canônicos divulgavam.
Na verdade, eles não
acreditavam na divindade de Jesus nem na sua ressurreição, mas tomavam tudo
como uma grande alegoria na qual a prática do exemplo de Cristo era a
verdadeira medicina da ressurreição. E dessa forma eles a praticavam,
sacrificando a si mesmos em prol da coletividade a qual serviam. Dai serem eles
mesmos "popelicans.”
O Cavaleiro do
Pelicano
A Maçonaria adotou a
lenda do pelicano por influência das tradições rosa-cruzes que o seu ritual
incorporou. Por isso é que encontraremos, no grau 18, grau rosa-cruz por excelência,
o pelicano como um dos seus símbolos fundamentais. O próprio título designativo
desse grau é o de Cavaleiro do Pelicano ou Cavaleiro Rosa-Cruz.
O Simbolismo do
pelicano é uma alegoria que integra, ao mesmo tempo, a beleza poética da lenda,
o apelo emocional do mistério alquímico e o romantismo do sacrifício feito em
nome do amor.
Tanto o Cristo quanto
a natureza amorosa vertem seu sangue para que seus filhos possam sobreviver.
José de Alencar,
grande expressão da literatura romântica brasileira utilizou esse tema em um de
seus mais conhecidos trabalhos, o poema épico Iracema.
Nesse singelo poema a
índia Iracema, sem leite em seus seios para alimentar Moacir, o filho dos seus
amores com o português Martim, rasga o próprio seio e o alimenta com seu sangue.
Assim, o filho da
aborígene com o colonizador torna-se o protótipo do homem que iria povoar o
novo mundo, a “nova utopia”, a civilização renascida, fruto da interação da
velha com a nova civilização.
Seriam esses “filhos
renascidos” do sacrifício da sua mãe que iriam, na visão do escritor cearense,
mostrar ao mundo uma nova forma de viver?