Todos vamos vendo as imagens. Todos nos sentimos indignados com a barbárie, com a inútil destruição, com a contabilidade, sempre crescente, do número de mortos. Todos nos emocionamos com as imagens de mulheres, idosos e crianças em fuga desesperada aos horrores da guerra que lhes bateu à porta e, sem pedir licença, lhes entrou pela vida dentro.
A primeira reação é
tomar partido. A nossa simpatia vai para quem foi agredido, todos os que foram
agredidos. A nossa condenação, dirigimo-la ao agressor, a todos os agressores.
Logo de seguida – e muito bem! – desperta a nossa solidariedade, a busca de
meios para ajudar quem sofre.
É natural, é humano,
horrorizar-nos com o horror, solidarizar-nos com a vítima, condenar o agressor.
É quase que instintivo fazê-lo. As nossas emoções impelem-nos a tal. Qual
pintura impressionista, retemos a noção geral de que os agredidos, a Ucrânia e
a população ucraniana, são as vítimas e que os russos são insensíveis
agressores. De um lado os bons, do outro os maus.
Mas a nossa Razão, sendo
influenciada pela nossa Emoção, deve impelir-nos a ir para além dela. Se
tivermos o cuidado de verificar alguns dados, saberemos que, segundo o censo
ucraniano de 2001, mais de oito milhões de residentes na Ucrânia (um pouco mais
de 17 % da população total) são russos. É certo que no Dombass, a região mais a
leste da Ucrânia, vivem – ou viviam? – cerca de quatro milhões e meio de russos
e que esta região não é atacada pelas tropas às ordens de Putin.
Mas ainda sobram cerca
de três milhões e meio de russos que vivem – ou viviam? – no resto da Ucrânia e
que, por isso, sofrem também bombardeamentos, também têm que se abrigar no
subsolo ou onde puderem, também estão tão cercados ou atacados como o resto dos
seus concidadãos. Um morteiro ou míssil russo, ao explodir, tanto pode matar
ucranianos como russos.
Não obstante, neste
confronto entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelenski, naturalmente que a nossa
simpatia vai para este, a nossa condenação para aquele.
Mas temos que ter em
atenção que muitos mais Volodymyr há na Ucrânia e muitos mais Vladimir há na
Rússia. E que, se é certo que muitos desses Volodymyr são heróis como o seu
Presidente que resiste, outros não o serão tanto assim e seguramente que também
alguns haverá que não são flor que se cheire… E, no outro lado, nem todos são
filhos de Putin!
Isto é facilmente entendível
pela nossa Razão, mas dificilmente aceite pela nossa Emoção. Mas, em tempos de
conflito, se temos de atender à nossa Emoção, temos que deixar que continue a
ser a nossa Razão a sobrepor-se, a ter a última palavra. Senão, nós próprios
cometemos injustiças que, para além de o serem, são sobretudo estúpidas!
Nos últimos dias, vimos
e ouvimos notícias de que, cá pelo burgo, nas nossas escolas, crianças russas
estavam a ser atacadas, injuriadas, agredidas, só por serem… russas. Mas que
culpa têm as crianças de terem nascido num lugar e não em outro, de terem pais
de uma nacionalidade ou grupo étnico e não de outro?
Este exemplo,
infelizmente real, mostra-nos que não podemos, não devemos, ver o Mundo a preto
e branco, os maus de um lado, os bons do outro. Nem todos os russos são
agressores (aliás, suspeito, que muitos são, em primeiro lugar, oprimidos…),
nem, seguramente, todos os ucranianos gostaríamos de ver casados com as nossas
filhas…
Solidariedade e auxílio
ao Povo Ucraniano, sim! São os agredidos, batem-se heroicamente em defesa da
sua terra, das suas casas, das suas famílias, e merecem todo o apoio que lhes
pudermos dar.
Mas tenhamos a lucidez
de entender que, do outro lado, não podemos generalizar e classificar todos
como os maus, os agressores, os violentos. Do outro lado, também há já milhares
de detidos por se manifestarem contra a agressão à Ucrânia. E certamente que
muitos combatem só porque são obrigados a fazê-lo.
Nesta guerra, não se
trata de um Povo atacar outro. Trata-se um Poder Político atacar outro,
indiferente ao sofrimento que causa aos Povos, o do outro e o dele próprio.
Sanções ao país
agressor, sim, mas com a noção de que o sofrimento que se inflige ao povo do
país agressor não se destina a punir, a castigar, esse povo, mas sim a induzir
a cessação da agressão, talvez até por revolta desse povo contra o verdadeiro
agressor.
Solidariedade e apoio
aos agredidos, sim. Condenação ao agressor, também sim. Mas não deixemos de
identificar bem quem é o agressor e quem apenas é utilizado, mandado, quiçá
obrigado, por ele.
Esta distinção entre
quem na realidade agride, manda agredir e obriga a agredir (e, não sejamos
ingênuos, não é só Putin, é ele e toda uma clique que se assenhoreou do poder,
para benefício próprio e não do povo que governam) e quem apenas obedece porque
tem de obedecer, porque a revolta só é possível quando estão reunidas as
condições para que ela possa emergir, é essencial, em termos de futuro.
Porque, por muito
difícil, por muito desesperada, por muito horrível que esteja a situação atual,
há algo que não podemos olvidar: tal como à Tempestade sucede a Bonança, depois
da Guerra há de vir a Paz.
Em tempos de guerra,
temos o dever de ajudar quem sofre, quem é agredido, mas não podemos perder de
vista que há que preservar as condições para que, o mais brevemente possível,
se alcance a Paz. A guerra pode ser desencadeada, pode ser mantida por qualquer
detentor do Poder.
Mas a Paz, essa, só é
possível entre Povos. Muitas feridas haverá que cicatrizar para que, da mera
deposição das armas, se chegue à verdadeira Paz. Para que tal se consiga, temos
que ter e transmitir a noção de que os Povos não são inimigos, que o inimigo é
quem desencadeia, propicia e mantém a guerra. Porque os Povos, de um e do outro
lado, o que anseiam é pela Paz.
Portanto, condenação de
Putin e dos filhos de Putin que constituem a clique que lançou e mantém esta
barbárie, auxílio ao Povo Ucraniano, mas também solidariedade com quem, de um e
do outro lado, quer a Paz e é obrigado, por vontade de alguns, a suportar a
guerra.
Solidariedade,
principalmente, com todas as crianças, de um e do outro país – e com as
crianças russas em Portugal -, que não têm culpa nenhuma dos desvarios dos
detentores do Poder.
Rui Bandeira