A simbologia da purificação pelos
quatro elementos encontra-se presente na maior parte dos
rituais de iniciação, dos ritos maçônicos continentais, e ausentes na
globalidade dos ritos de origem anglo-saxônica. Este procedimento litúrgico,
que integra as provas sucessivas da terra, água, ar, e fogo, baseia-se numa
concepção simbólica da constituição da matéria, profundamente enraizada
na cultura clássica ocidental.
O estudo do Cosmos foi um dos temas recorrentes entre os
filósofos gregos pré-socráticos. Segundo Actius “Foi Pitágoras o primeiro que
deu o nome de Cosmos à envolvente do universo, em razão da organização que aí
se vê”.
O mesmo filósofo refere, ainda, que “Thales, Pitágoras e os da
sua escola tinham dividido a totalidade da esfera celeste em cinco círculos,
que eles chamavam zonas”.
Estes consistiam no equador, nos trópicos, no circulo
ártico, e no circulo antártico.
Tião de Esmirna nos conta dos ensinamentos de Filolaos (Filolau
de Crotona), que estabelece uma correspondência simbólica entre as cinco zonas
da esfera celeste e cinco elementos: “Os corpos da esfera são cinco: o fogo, a
água, a terra e o ar, que se encontram contidos na esfera, aos quais se
acrescenta um quinto, a casca da esfera”.
Resulta, pois, evidente a correspondência dos quatro elementos
atrás referidos às cinco zonas da esfera celeste, e a crença na existência de
um quinto elemento representativo da unidade de todo o Cosmos. Esta
correspondência identificava a água com a região antártica, os trópicos com o
ar, o ártico com o fogo e, a terra com a zona equinocial.
Para além deste arquétipo cosmológico, os quatro elementos
tradicionais tiveram, também, interpretação metafísica, simbolizando Zeus o
fogo, Hera a terra, Nestes (Hefesto) a água e Adônis o ar.
Tendo em conta a sua proveniência e essência, estes quatro
elementos da física pré-socrática não podem ser considerados literalmente, mas
apenas simbolicamente, seja no seu contexto de origem, seja no âmbito dos
domínios que, posteriormente, os importaram por sincretismo, tais como a
filosofia hermética, a alquimia, ou a maçonaria.
É neste último caso, que importa aprofundar a sua gênese e
disseminação.
Muito embora a temática das viagens tenha estado presente, nas
cerimônias de iniciação, desde os primórdios da maçonaria especulativa, o mesmo
não se passa relativamente às purificações pelos quatro elementos. Assim:
Em 1730, Samuel Prichard na sua “Masonry Dissected” (Maçonaria
Dissecada) refere, somente, que o candidato efetuava uma volta à Loja, para se
apresentar à assistência;
Em 1737, no mais antigo Ritual Francês conhecido, o
recipiendário fazia três viagens, antes de ser conduzido ao Venerável Mestre.
Não existem, neste ritual, nem elementos, nem provas, nem purificações, apenas
no decurso das viagens era vertida resina em pó sobre os candelabros
justapostos ao Quadro de Loja, para causar maior impressão no recipiendário;
Em 1767, os “Rituais do Marquês de Gages” descrevem o
recipiendário conduzido à volta da Loja pelo 1º Vigilante, sem que intervenham
nas viagens nem elementos, nem purificações, se bem que a prova do fogo figure
na iniciação;
Todavia, um catecismo de 1749, de uma Loja de Lille, comporta a
resposta “Fui purificado pela água e pelo fogo”. Trata-se da mais antiga menção
desta inovação, a qual já existia em altos graus praticados na época,
podendo ter migrado daí para a maçonaria azul. Estas duas purificações não
têm, aliás, origem hermética, mas sim bíblica, correspondendo aos batismos da
Antiga e da Nova Aliança. Recordem-se as palavras de S. João Batista, em
Mateus 3.11 “Em verdade vos batizo com água… mas aquele que vem após mim… batizará-vos
com o Espírito Santo e com fogo”;
Em 1786, no “Régulateur Du Maçon” (Regulador do Maçom),
documento fundador do Rito Francês, o Grande Oriente de França fixa a
purificação pela água após a segunda viagem, e a purificação pelo fogo após a
terceira, sem haver qualquer referência a outros elementos;
Os três elementos constituintes da matéria, na perspectiva
Martinista (fogo, água, terra) só aparecem tardiamente na maçonaria retificada,
em 1786-1787, apenas e somente com a interpretação especifica do RER, sem
qualquer relação com a que se encontra nos restantes ritos;
O “Guide des Maçons Écossais” (Guia dos Maçons Escoceses), de
1804, mais antigo documento regulador dos graus simbólicos do REAA, faz passar
o recipiendário pelas chamas purificadoras na terceira viagem, sendo as duas
anteriores isentas de purificações;
Enfim, em 1820, o Ritual do Rito de Misraïm explicitamente prevê
a purificação pelos quatro elementos, sendo a prova da terra objetivamente
associada à passagem pela Câmara de Reflexões, e as purificações pela
água, fogo, e ar, realizadas sucessivamente por esta ordem, associadas a três
viagens realizadas fora do Templo, nos Passos Perdidos. Tratou-se, pois, de uma
completa inovação, relativamente a um século de pratica maçônica anterior,
neste país.
Este modelo repetiu-se no Ritual do 1º Grau do Rito de Memphis,
de 1838, no qual apenas foi alterada a ordem dos elementos, para
terra-ar-água-fogo. A migração desta simbologia foi quase imediata, dos Ritos
Egípcios para os demais ritos praticados à época na França, passando, contudo,
as purificações a serem realizadas no interior do Templo.
Muito embora nas revisões do Rito Francês efetuadas até a versão
Murat, de 1858, tenha sido mantido, formalmente, o protocolo inicial das duas
purificações, a identificação das viagens com os quatro elementos foi,
correntemente assumida pelos autores maçônicos da época ligados a este Rito,
nomeadamente por Clavel e, por Ragon.
A partir de 1877, as purificações foram retiradas dos rituais do
Grande Oriente de França, na sequência de uma revisão laicizante do Rito, tendo
sido reintroduzidas, já com referência aos quatro elementos, no decurso
dos últimos decênios. Tanto no Rito Francês Groussier, como no Rito Francês
Moderno Restabelecido, a ordem dos elementos considerada é terra-água-ar-fogo.
Tal foi, também, a ordem elegida por Robert Ambelain, na sua
revisão dos rituais dos Ritos Egípcios, que deu origem ao Ritual do Rito Antigo
e Primitivo de Memphis-Misraïm, atualmente praticado.
No REAA, a importação também se deu imediatamente, estando à
mesma presente em todos os Rituais da Grande Loja de França, desde a sua
fundação em 1896, com a ordem terra-ar-água-fogo, que é hoje característica
deste Rito. Se o REAA influenciou, na sua gênese, os Ritos Egípcios, também
podemos considerar que estes vieram, reciprocamente, a inspirar, de algum modo,
a sua matriz original.
Perante toda esta sequência cronológica, duas perguntas surgem naturalmente:
– Por que é que estas purificações apareceram em 1820?
– E por que num Rito Egípcio?
A resposta para elas poderá estar em… Mozart!
No libreto da ópera “A Flauta Mágica”, de 1791, no seu segundo
ato, cena 7, consta a seguinte referência:
“Aquele que avançará por esta estrada plena de obstáculos
Será purificado pelo fogo, a água, o ar e a terra
Se ele pode superar os receios da morte
Se elevará da terra até ao céu”
Será purificado pelo fogo, a água, o ar e a terra
Se ele pode superar os receios da morte
Se elevará da terra até ao céu”
Sendo esta ópera da autoria de dois Maçons, Mozart e Shikaneder,
e reproduzindo a mesma uma iniciação, será que esta simbologia já existia na
maçonaria austríaca trinta anos antes de ter surgido em França?
Mozart foi iniciado em 14 de dezembro de 1784, em Viena, na Loja
“Zur Wohltätigkeit”, sob os auspícios da Grande Loja Nacional Austríaca. Antes
dessa data, praticavam-se, em Viena, quatro ritos: a Estrita Observância, o
Rito de Zinnendorf, o RER e o Rito de Adoção.
Muito embora a Loja-Mãe de Mozart tenha sido constituída para
praticar o RER, à data da sua iniciação, a oficina utilizava já outro ritual,
do qual se encontra depositada, em Copenhague, uma cópia manuscrita.
Trata-se de um ritual claramente de influencia francesa, todavia
com alguns pontos comuns ao Ritual do 1º Grau do Rito de Zinnendorf. Nesta
cerimônia, o recipiendário, depois de passar pela Câmara de Reflexões, faz três
viagens.
Segundo o texto deste ritual, o Venerável Mestre ordena ao Segundo
Vigilante que faça o recipiendário realizar a primeira viagem “pelo ar e pela
terra”, a segunda “pela água”, e a terceira “pelo fogo”, sem haver, contudo,
qualquer referência a purificações.
Se este conceito migrou da maçonaria para a ópera, tal não pode
ser objetivamente confirmado. Constitui, contudo, um fato, que Mozart foi
iniciado através de um ritual que mencionava os elementos, não assumindo,
todavia, no mesmo a forma presente no libreto de “A Flauta Mágica”, que se
parece reproduzir no Rito de Misraïm.
No final do séc. XVIII a maçonaria austríaca irá cair na
penumbra, e praticamente desaparecer, em virtude dos éditos restritivos de José
II, o mesmo não sucedendo, contudo, a “A Flauta Mágica”, que conhecerá uma
notoriedade assinalável por toda a Europa.
Subsistem, todavia, as perguntas: por que 1820, e por que num
Rito Egípcio. Poderá, no entanto, ter sido recentemente descoberto o elo da
cadeia, que faltava para lhes dar resposta.
Em 1801, Ludwig Wenzel Lachnit, natural de Praga, apresentou ao
público parisiense uma “nova ópera de Mozart” denominada “Os Mistérios de
Ísis”. Esta obra, com libreto em Francês, da autoria de Étienne de Chédeville,
e música reciclada a partir da partitura da “A Flauta Mágica”, e de importações
de outras óperas de Mozart, conheceu um assinalável sucesso, atingindo um total
de 130 representações até 1810, com reposições em 1816, e 1827.
Terá sido a ópera mais representada durante o Império, não sendo
estranho ao seu êxito o fato de a sua estréia ter coincidido com o final da
Campanha do Egito, e de ter beneficiado de uma quinzena de anos nos quais os
temas egípcios estiveram na moda.
No livreto desta obra, publicado em Paris, em 1806, as
personagens são precipitadas “num sombrio subterrâneo”, passando posteriormente
para outro “sombrio e profundo subterrâneo destinado às provas do fogo, da
água, e do ar” antes de, finalmente, acenderem ao “Templo da Luz”.
Será que, numa altura em que a informação existente sobre o
Antigo Egito era escassa e mítica, o livreto de “Os Mistérios de Ísis” não
poderá ter servido de inspiração aos irmãos Bédarride para escreverem o
Ritual do seu Rito de Misraïm?
Trata-se, contudo, de uma pergunta que só eles poderiam
responder, sendo, todavia, comprovado, que nos meios maçônicos da época, lhes foram
merecida ou imerecidamente, atribuídos propósitos idênticos aos que teria tido
o promotor desta ópera, e que teriam mais a ver com metais, do que com valores
maçônicos.
A ter-se verificado, este “transfer” constituiria mais um
exemplo de que nem a sociedade é impermeável a ideias veiculadas na maçonaria,
nem esta última o é a ideias, ou modas, provenientes da sociedade.
Este sincretismo pode, ainda, ser indiciado pelo fato de
Alexandre Lenoir ter publicado, em 1814, o livro “La Franche-Maçonnerie rendue
à sa véritable origine”, o qual marca a origem da Egiptologia Maçônica e, onde
se descrevem as iniciações no Antigo Egito (mítico), referindo-se as
purificações pelos quatro elementos e, a necessidade das cerimônias maçônicas
se ajustarem aos procedimentos dos Antigos Mistérios.
Ainda no que concerne à ópera de Lachnit, apesar do enorme
sucesso comercial obtido, não se eximiu de ser severamente criticada nos meios
musicais mais eruditos, nomeadamente por Berlioz, ou por Otto Jahn, que lhe
alterou o titulo de “Les Mystères d’Isis” para “Les Misères d’ici”.
Em conclusão, as purificações pelos elementos, introduzidas em
força e vigor na maçonaria, no primeiro quarto do séc. XIX ganharam plena
profundidade simbólica já no séc. XX, através da contribuição de vários
simbolistas notáveis, dos quais destaco Oswald Wirth, que incorporou muitas
interpretações herméticas à simbólica tradicional maçônica do REAA. Termino,
pois, com palavras suas bem elucidativas do sentido iniciático que podemos dar
a este procedimento ritual:
“Esta vida de ordem superior proporciona-se através do
desenvolvimento do princípio da personalidade, dado que o ser inferior não é
mais do que um autômato que reage mecanicamente sobre a ação das forças das
quais é o joguete. A sua vida permanece material ou elementar porque ela
resulta unicamente do conflito dos Elementos… Mas as forças exteriores, tão
potentes sejam elas, devem ser dominadas pela energia que acha a sua origem na
personalidade. É porque o homem é chamado a desenvolver em si um princípio mais
forte que os Elementos, que ele entra em luta com eles no decurso das provas
iniciáticas”
Pessoalmente, penso que este princípio reside no Conhecimento,
principal impulsionador da elevação da Condição Humana, entendendo-se o mesmo
não só como sapiência, mas também e, fundamentalmente, como consciência.
Cada um, contudo, dentro do seu livre-pensamento deverá encontrar a sua
interpretação pessoal para o mesmo.
Só assim estaremos, realmente, a fazer Maçonaria.
Autor: Joaquim G dos Santos
Loja de S. João Fiat Lux nº 537, Oriente de Lisboa, filiada ao G.’.O.’.L.’.
Fonte: Ritos & Rituais
Publicado inicialmente em https://independent.academia.edu/joaquimSantos4
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