Permitam-me, Meus Queridos Irmãos
que regresse novamente a um dos epítetos mais conhecidos atribuído à nossa
augusta Ordem Maçônica: aquele que a intitula de Arte Real.
Para que não subsistam dúvidas
quanto aos termos usados ou numa tentativa de os aclarar existe a necessidade
de nos aproximarmos do seu sentido mais puro. Arte, provém do étimo latino “ars,
tis” e o seu sentido etimológico designa uma habilidade adquirida, a qual
se opõe às faculdades concedidas pela natureza e, por outro lado, ao
conhecimento rigoroso da realidade, da ciência ou scientia. Mas
este termo deriva de outro ainda mais específico. Como sabemos, a língua latina
absorve muito dos étimos gregos, de onde recolhe a semântica e os transforma
para o seu uso, nem sempre com a abrangência que estes possuíam para os
helenos.
No mundo grego, a arte ou a
atividade artística não era entendida exclusivamente como uma habilidade para
criar algo estético, como para os romanos. Na verdade, num sentido mais remoto,
para os gregos, a palavra τέχνη [1] estava relacionada ao
vínculo mestre-discípulo. O mestre conhecedor de uma determinada habilidade
transmitia uma série de ensinamentos a um discípulo para desenvolver tal
destreza. Esta ideia apresenta um quadro de referência geral, pois tudo o que
sabemos foi previamente ensinado por alguém.
Quanto ao adjetivo posposto
“Real” existem duas hipóteses que poderão trazer-nos luz sobre a sua semântica
e que apesar de aparentemente opostas, veremos mais à frente como estas se
complementam. A primeira hipótese é a de que provém do étimo latino “regalis”
que por sua vez é um vocábulo formado a partir de “rex, gis” que tem a mesma
raiz indo-europeia *reg (direito, gerir, guiar, comandar em linha
reta) de reger, ou seja, governar. A segunda hipótese é que tenha provindo do
étimo latino “realis” cujo sentido é o de “verdadeiro, real”.
De fato, estes dois sentidos não
se opõem, antes se complementam, pois se é verdade que ao nos propormos o
caminho maçônico deveríamos estar comprometidos em seguir por um caminho reto e
virtuoso, outra coisa então não é de esperar que a verdade (verdade nos
propósitos, verdade nas ações, verdade na responsabilidade, verdade para
consigo mesmo e para com os demais, verdade nos ideais, etc.) esteja
intrinsecamente presente não só no caminho, como principalmente no caminhante e
por extensão na própria caminhada.
A Arte Real era chamada na Idade
Média, à ciência conhecida pelos construtores de edifícios de estrutura
complexa – as catedrais, ciência esta que ninguém, além deles dominava; por
outro lado, também nesse período a Arte Real foi um dos nomes do trabalho dos
alquimistas. Tanto os construtores de catedrais medievais quanto os Alquimistas
tinham algo em comum: no seu ofício não se limitavam a um mero processo
mecânico e material, ao desenho e fabricação de paredes e arcos, ou à tentativa
de purificar metais.
Os antigos maçons (construtores e
alquimistas, portanto) descobriram, graças ao seu trabalho, uma transcendência
que preencheu as suas vidas e que ia muito além da mera manipulação de objetos.
Os antigos pedreiros operativos criaram uma sociabilidade: a elevação de uma
abóbada cruzada ou a procura da pedra filosofal deram origem a novos modos de
ser, de se comportar e de compreender a vida.
Como daqui podemos depreender,
as Antigas Guildas [2] dos
Construtores Medievais são o berço histórico, simbólico e filosófico da
Maçonaria tal como hoje a conhecemos. Assim, derivada dessas corporações
medievais, recebeu a sua estrutura e os seus graus iniciáticos, bem como o
sublime simbolismo representado pela Arte de Construir que,
para a Maçonaria, constitui uma arte sagrada e espiritual representada através
do ritual.
Tanto a estrutura, graus e ritual
recebidos, foram inevitavelmente aperfeiçoados, adaptados e evoluídos ao longo
dos tempos, mantendo sempre a sua essência: a do apelo ao interior da terra, ao
que há de mais profundo e sublime em cada Homem, para lá descobrir a sua
essência divina, que o torna partícipe do poder de criar e de se recriar.
Para lá descobrir, que não é
único, mas que forma parte de um todo metafísico, que está para além das leis
do tempo e do espaço.
A Maçonaria Regular atua
simbólica e ritualmente na construção do Templo Universal dedicado à glória do
Grande Arquiteto do Universo, que considera como um Princípio Espiritual que
dirige e orienta os seus trabalhos e cuja influência é transmitida ao neófito
através do Ritual de Iniciação [3].
Esta construção é simultaneamente
interior e exterior. É interior todas as vezes que o Maçom, qual templo da
divindade permite que o espírito divino se manifeste; é exterior porquanto este
maçom é uma pedra que conjuntamente com os seus Irmãos de Loja ergue o Templo
“de todos os tempos que se estende sobre a face da terra”. A Arte
Real da Maçonaria tem início na expressão do simbolismo da pedra
bruta no trabalho do aprendiz iniciado, pedra que devemos lapidar continuamente
a fim de que despojada de toda a sua aspereza se aproxime gradualmente da forma
consoante não só à realidade do que somos, mas também ao destino que nos
espera.
Assim, este desbastar a
Pedra é uma forma maçônica de dizer que o aprendiz – o Maçom em geral –
trabalha sobre si mesmo para se livrar de preconceitos, vaidades,
superficialidades e do mundo ilusivo das formas que o homem aprende e imita no
“mundo profano”, mundo ao qual deve renunciar e morrer a fim de renascer como
um novo homem. Esse trabalho é feito pelo pedreiro com três ferramentas: o
maço, o cinzel e a régua.
O simbolismo destes artefatos de
construção é essencial para a construção da personalidade maçônica. A Arte
Hermética, ou Arte Real, ou Arte Régia é, pois, um dom para o qual muitos são
escolhidos, mas poucos são convidados e não me refiro a convites pessoais para
a nossa Ordem. Esses, valem o que valem. A Iniciação é uma interpelação que
poucos homens vivenciam e que permite que eles se afastem do mundo exterior, se
aproximem de si mesmos, com o fim de conviverem com os demais em plenitude de
sabedoria e comunhão fraterna.
A Arte Real é, então, um processo
de transformação, uma mudança gradual do homem que aos poucos abandona as
asperezas, arestas e excrescências da sua personalidade profana e grosseira a
fim de se aproximar do seu Templo interior, isto é, da introspeção profunda que
o conduz a Luz da Verdade que o habita, que vem da iluminação pela compreensão
da verdadeira essência de Deus e do Homem, para além das crenças, dogmatismos e
formalismos do culto religioso.
Esta visão interna, que nasce da
transformação exterior até à interior – ou como dizemos muitas vezes, do
desbastamento da Pedra Bruta – é o que a Maçonaria chama de “polir a pedra”, ou
seja, torná-la cúbica, mas como uma evolução da pedra bruta que aos poucos vai
abandonando as suas formas para avançar na melhoria contínua da sua
personalidade. Por isso, em vão trabalha se esforça o Maçom se as suas obras
não forem dignas da Glória do Grande Arquiteto do Universo.
Sérgio C., M. M. – R. L.
Miramar, nº 36 (GLLP / GLRP)
07.11.6023 (A.L.)
Notas
[1] “tékhne” – significa
“arte”, “habilidade”, “técnica” ou “ofício”.
[2] Atente-se no valor
semântico de Guilda e nunca de agremiação.
[3] Aqui se vê a importância
do rigor em ser cumprido e da dignidade em ser executado.