Para inicio desta minha
pequena Prancha de hoje, sobre o Espelho da Câmara de Reflexões, pareceu-me
útil fazer um “flashback” ao já distante dia 4 de Março de 2011, no
qual fui recebido como Aprendiz, na Respeitável Loja Romã. Para isso, recorri à
leitura das minhas “Impressões de Iniciação”, curioso por recordar o
que tinha, então, traçado.
O que escrevemos, não é
de certa forma, também um espelho de nós próprios? Não vos parece, meus
Queridos Irmãos, que escritos e fotografias são reflexos, cristalizados no
tempo, do que fomos, e podemos já não ser? E que mesmo o que se afigura
imutável, pode não ser visto hoje, do mesmo modo do que, no passado, o foi?
Será que, como escreve Anais
Nin, “Nós não vemos as coisas como elas são, nós vemo-las como nós somos”?
Relendo a minha Prancha
de então, descobri a seguinte referência: “Tendo presente todo o conteúdo
simbólico desta Câmara, contemplei a minha imagem no Espelho e, perante a visão
de um homem que já viveu dois terços da sua vida, procedi a um exame de
consciência sobre os meus atos passados (…). E foi dentro desta linha de
raciocínio, que fui questionando o mais intimo do meu ser, procurando
identificar motivos para arrependimento, e correção de atuações futuras”.
Dessa noite, e dessa
passagem por esta pequena divisória, onde se alternavam Luz e Trevas,
recordo-me que, ao lado do Espelho, sobressaía uma inscrição, rodeada de
desenhos de caveiras, tíbias, e lágrimas, a qual dizia “Esta é a gruta da
tua morte profana”. Nas minhas memórias dessa caverna, que
visitei (“Visita”) bem no interior (“Interiorem”) da
Terra (“Terrae”), sobressai à imagem do Crânio, iluminado pela luz mortiça
da Vela, e da profunda impressão que o mesmo me deixou.
Escrevi, então: “A
Caveira, simboliza a Morte, a brevidade das vaidades humanas, o poder
transformador da Terra, que corrompe o corpo humano, reduzindo-o ao estado de
esqueleto. Veio-me à memória uma expressão latina muito utilizada na pintura
medieval, associada à representação do esqueleto “Sic Transit Gloria Mundi” –
(Assim passa a glória do mundo)”.
Este meu comentário,
recorda-me, igualmente, que em algumas Câmaras de Reflexão, a Caveira apresenta-se
acompanhada de uma inscrição do tipo “Eu fui o que tu és, tu serás o que
eu sou”, a qual não constitui mais do que outra forma da mensagem deixada
pelos monges, que erigiram a famosa Capela dos Ossos, existente na Igreja de S.
Francisco, em Évora. Nesta singular construção, é exibida a inscrição “Nós
ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.
Mas, relendo e recordando
todas estas vivências únicas, que integram o âmago do meu Segredo Maçônico,
ocorrem-me uma interrogação: Será que o Crânio, da Câmara de Reflexões, não é,
também, uma forma de Espelho?
Será que esta imagem, da
“Morte de Alguém”, não nos religa à nossa própria Morte e, como tal, nos revela
uma parte intrínseca de nós?
Se as nossas imagens, no
Espelho, são distintas, e especificamente nossas, para mim, que não sou
paleontologista, os Crânios Humanos são todos iguais. E aquela Caveira, que me
sorriu na mesa da Câmara, tanto podia ser o Crânio de Luís XIV, do Papa
Alexandre VI, do padeiro que me vendia o pão, do amigo que partilhava comigo o
vinho, da sem-abrigo que me pedia auxilio, do Yorik do “Hamlet” ou,
pura e simplesmente, a antevisão da minha própria imagem, qual Espelho que
reflete o futuro.
Nada é mais igualitário,
e universal, do que a Caveira, que nos relembra o único ponto seguramente
comum, de todo o destino Humano. Sensibilizarmo-nos da inevitabilidade da
Morte, é apelar para a consciência da nossa Humanidade, com todas as glórias e
misérias associadas a esta condição. E, aceitarmos essa Humanidade, não é esse
um dos principais objetivos do processo progressivo do despertar da
consciência, e da Conversão do Olhar, que se inicia com a Morte do Antigo Homem?
Confrontarmo-nos com nós próprios, e com o nosso destino, não é esta a primeira
etapa do processo alquímico, que tem inicio nesta “Obra em Negro”, no
Athanor da Câmara de Reflexões?
Todavia, como nos
demonstram as peripécias da Madrasta, da História da Branca de Neve, o Espelho
também pode matar ilusões. Porém, é pela morte das falsas ideias, que se
caminha para a Verdade. Não vos parece, pois, meus Queridos Irmãos, que este
binário Espelho/Crânio ilustra, em certa medida, o velho Principio Hermético da
Correspondência dos Contrários (“O que está em cima é igual ao que está em baixo…”)?
E, que assim sendo, estes dois Símbolos se interligam, em alternância cíclica,
como se fossem partes de um mesmo Ouro boros?
Mas, porque será que dos
infinitos rostos, que se cruzam conosco, nas nossas vidas, o nosso é,
geralmente, o que conhecemos pior?
Será porque o Espelho nos
dá, apenas, uma imagem invertida de nós próprios, e não nos permite vermo-nos
realmente? Ou antes, porque, como dizem ao Principezinho, de
Saint-Exupéry, “Só se vê com o coração. O essencial é invisível aos olhos”?
Não nos podemos, ou será que não nos queremos ver?
Para encontrarmos a
Verdade, talvez tenhamos de fazer como a Alice, de Lewis Carroll, e de passar
para o outro lado do Espelho. Será que, se o fizermos, encontraremos não o
Espelho, mas o retrato de Dorian Gray, imaginado pelo nosso Irmão Oscar Wilde,
que nos mostrará como, na realidade, somos, no nosso “Eu” profundo, e não como
nos vêem?
Passados quase nove anos,
da noite da minha Iniciação, que respostas vos posso dar, meus Queridos Irmãos,
para estas perguntas?
Seguramente não muitas,
pois a Maçonaria leva-nos mais a colocar questões, do que a encontrar
respostas. E, se assim o fizermos, estaremos a praticar bem a Arte, pois são as
perguntas que erodem as nossas falsas certezas, redutoras do reflexo no Espelho
a uma ilusão de óptica, deformada pelo nosso Narcisismo.
Numa coisa, contudo,
acredito – vale a pena olhar para o Espelho. Não disse Sêneca, que “aquele
que se aproxima de um espelho para mudar, já mudou”? Passados nove anos, de
muitos momentos Luminosos, e de alguns menos Luminosos, não estou, em nada,
arrependido de me ter posto em marcha.
Todavia, o meu percurso
faz-me acreditar, neste momento, de que não basta esperarmos encontrar a nossa
própria Unidade, o nosso “Eu” profundo, este Centro essencial do Ser, apenas no
interior de nós próprios, como eu supunha nas minhas “Impressões de
Iniciação”. Não é só uma questão de ascese, e de exames de consciência,
como eu pensava então, na minha falta de humildade profana, de julgar que podia
resolver tudo sozinho.
Sem dúvida de que, se a
Luz que buscamos, com o auxílio dos Símbolos, e do Rito, resulta de uma
iluminação interior, que emana de nós próprios, então necessitamos dos nossos
Espelhos mentais para fazê-la ver, e não podemos deixar de Retificar (“Retificando
que”), para encontrarmos (“Invenies”) a Pedra
Escondida (“Occultum Lapidae”).
Todavia, o meu percurso
tem-me levado a pensar, que para nos autoconhecermos realmente, teremos de
recorrer a todos os Espelhos, que a Maçonaria e a Vida nos oferecem,
nomeadamente através da escuta, e da observação do Outro, que nos reflete a
Imagem que suscitamos nele. Sem o Outro, não conseguimos, verdadeiramente,
descobrir o Centro do nosso “Eu”.
São, pois, todos estes
Espelhos, e inclusivamente aquele que nos deu a conhecer o nosso pior inimigo,
que nos permitem a Conversão do Olhar. Em especial, daquele Olhar que
focalizamos para nós próprios, levando-nos, com lucidez, Vigilância, e
Perseverança, a aceitarmo-nos tal como realmente somos, e a encontrar esse
fundamento essencial da Maçonaria, que é a Fraternidade, condição indispensável
ao Amor.
Esta começa no momento em
que o Outro se torna o Espelho de Nós próprios, esse “Alter Ego”, que
nos reconhece como tal.
O percurso iniciático é,
pois, um longo jogo de Espelhos, que encontramos sob a Abóbada Celeste, do
Meio-Dia à Meia-Noite, no qual aspiramos a que, um dia, vejamos refletida uma
imagem mais Sábia, mais sustentada na Força, e com uma Beleza interior, que
verdadeiramente nos adorne, na concretização de um “Eu” mais Fraterno. Não nos
esqueçamos, que para o Maçom, o verdadeiro adorno é o das Virtudes, e de que
não há Virtude maior do que o Amor pela Humanidade.
Pensando bem, não acham,
meus Queridos Irmãos, que iniciar um percurso destes é já, à partida, passar
para o outro lado do Espelho, e arriscarmo-nos a ver tudo ao contrário?
Joaquim G. Santos