O CONTEXTO DO NASCIMENTO DA MAÇONARIA ESPECULATIVA NO CONTINENTE EUROPEU


 

“E, como a habilidade artesanal permanece a base da manufatura e o mecanismo global que nela funciona não possui qualquer esqueleto objetivo independente dos próprios trabalhadores, o capital trava uma luta constante com a insubordinação deles. [...] A queixa sobre a falta de disciplina dos trabalhadores atravessa então todo o período da manufatura [...].”

Karl Marx, O capital, v. I, [1867] 2017, p.442

É geralmente aceito que a maçonaria especulativa apareceu na Inglaterra, quando outros elementos, estranhos à profissão de pedreiro, foram admitidos nas corporações de pedreiros.

Sucede que este tipo de corporações, que regulavam o exercício da profissão e garantiam a assistência entre os seus membros, estavam ligadas à igreja, e ao direito canônico, porque os principais clientes das obras eram também a Igreja.

Mas no continente Europeu, onde existiam também estas corporações, a guerra dos cem anos interrompeu as grandes obras da Igreja, passando estas a ser mais de caráter civil, ficando por acabar muitas das catedrais, como Rodez, Albi, Saint Quin de Ruen, Ratisbona, Nuremberg, Milão, etc.

O que fez com que gradualmente, a partir desta época, as corporações de ofícios deixassem de estar vinculadas a Igreja, que era o principal patrão, por estatutos semelhantes aos das confrarias religiosas e sujeitos à lei canónica.

Mas a tradição de independência já era antiga e embora as corporações tivessem esta vertente religiosa e assistencial, já eram independentes quanto à sua regulamentação da atividade, e muitas vezes o próprio poder central as regulamentava, como foi o caso de Portugal, no fim do século XIV com a “casa dos 24” e em França em meados do século XIII, no tempo de S. Luís, com a regulamentação dos cento e um ofícios.

O certo é que, o século XIV, em particular, foi perturbado — em todo o ocidente europeu — por dramas revolucionários, mais ou menos violentos, não apenas de camponeses, mas também porque as tradicionais corporações eram muito restritivas no acesso dos companheiros à mestria, formando-se legiões de "conpagnons" nos vários ofícios, que devido às regras rígidas das corporações acerca da prestação do trabalho, formavam um mundo de mão-de-obra qualificada e mal paga.

E a partir daí, surgiram muitas novas corporações de “compagnos”, que estavam na vanguarda no mundo do trabalho.

As anteriores referiam-se apenas às suas práticas habituais de solidariedade entre trabalhadores e regulavam as rigorosas condições de acesso ao grau de mestre.

Estas uniões novas, afirmando a sua personalidade diante dos mestres e aos olhos das mais diversas autoridades, aparecem principalmente, pelo menos à primeira vista, como formações de combate e reivindicação de classe.

E muitas das antigas tiveram de se adaptar às novas circunstâncias, de forma a que os seus estatutos fossem puramente civis, respondessem às reivindicações laborais dos companheiros, regulando do exercício da profissão em matérias como o salário, os direitos de autor, assistência mútua, fundo de garantia mútuo, e sobretudo regulando o direito à greve, com rituais de reunião não religiosos e em que o juramento era prestado já não sobre os Evangelhos, mas sobre os estatutos da corporação.

Uma das que alteraram substancialmente os seus estatutos, foi a corporação “dos pedreiros de Estrasburgo”, constituída em 1325, aquando do início da construção da catedral desta cidade, mas que em 1459, embora mantendo alguma influência religiosa, como a invocação da Santíssima Trindade, Santa Maria Mãe de Deus e dos quatro santos coronados, cujos estatutos foram alterados, abrangendo a região de Spire, Estrasburgo e Ratisbona, com o um cunho laico e jurisdição interna e puramente civil.

É precisamente no ponto 46 destes novos estatutos, que tenho conhecimento da primeira adesão de não profissionais do ofício, ao estatuir-se que: “Se um homem piedoso deseje participar no serviço divino, devemos recebê-lo, mediante um estipêndio inicial, depois anual. Mas além do serviço divino, ele não pode participar nos trabalhos da corporação”.

Aqui o “Serviço Divino”, já não é a tradicional missa, mas as cerimónias de juramento sobre os livros da corporação e o estipêndio já não é a tradicional esmola, mas a contribuição obrigatória para o fundo comum.

Neste caso, estamos já em presença de uma organização meramente profissional, com um sistema de recrutamento de aprendizes, companheiros, ajudantes e mestres, à semelhança das antigas corporações, mas estatutos próprios, embora ainda secretos, em razão das regras próprias e métodos de construção próprios do ofício, uma tesouraria, abrangendo já vastas regiões geográficas e não apenas uma cidade.

A preocupação era já a de uma organização civil, de classe, regulamentando e uniformizando as práticas do ofício e de um fundo de garantia mútua.

Na Inglaterra o nascimento da maçonaria especulativa surgiu mais tarde, porque as corporações de maçons, mantiveram até muito mais tarde as suas características de confrarias religiosas, de um ofício, circunscritas a uma cidade ou a circunscrição diocesana, e quando começaram a admitir não profissionais do ofício ainda mantinham esta característica de corporação religiosa.

Como as convulsões sociais abalaram a Europa logo no século XIV, em plena era da produção em regime de manufatura, e na Inglaterra muito tardiamente já em meados do século XVII (1648), na transição para a produção industrial, as confrarias tradicionais não tiveram tempo de se adaptar, mantendo as anteriores características, quando admitiram novos membros alheios ao ofício.

E também não faziam já sentido, como reguladoras de um ofício, num novo sistema de produção, que substituiu a manufatura e o artífice, pela produção industrial e operariado.

Por esta razão, a maçonaria inglesa tornou-se especulativa sem ter tempo de se laicizar, ao contrário da continental.

Talvez estas diferentes características, estejam na origem de a maçonaria Inglesa ser gnóstica e a maçonaria continental ser de tendência laica.

E seja por isso que é a maçonaria gnóstica que vai contra a tradição no continente europeu e não o oposto.

Marco Aurélio

M.’.M.’.

 

 

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