Embora apreciadores da beleza do
silêncio, seja durante um passeio ao ar livre, andando na rua, trancados no
interior de nosso veículo ou dentro de nossa casa, nós escutamos avidamente uma
música gravada, um programa de televisão ou de rádio.
Enquanto parte de nós sonha com
a calma, paz e profundidade, paradoxalmente outra parte foge do silêncio e nos
arrasta para o mundo do tumulto e barulho.
De um
lado, somos fascinados pela grandeza potencial do silêncio, mas por outro,
os sons dos nossos mecanismos de pensamento e emoções preenchem
automaticamente o nosso espaço interior. Eles nos impedem de nos escutar, de
nos ver, de nos aprofundar, de nos encontrar face a face conosco.
Nós
somos infiéis à condição de nossa humanização. Nossos pensamentos e emoções
agitam-se perpetuamente. Uns nos ocupam ou nos preocupam; outros nos fazem
vibrar. Ambos nos hipnotizam e nós procuramos ali, a perspectiva de uma solução
para os nossos problemas, ou uma esperança de felicidade para nossa solidão.
Estamos
tão acostumados e identificados com suas produções ou suas autoproduções que
acabamos por acreditar que nós somos os nossos pensamentos e nossas emoções e
que, sem eles, nossa vida perderia sua intensidade ou simplesmente não mais
existiríamos. Seus silêncios, o silêncio nos assusta.
Quando
não ouvimos mais a agitação barulhenta da presença de nossos pensamentos ou de
nossas emoções, temos uma terrível sensação de vazio, de nada, de morte, e
fornecemos o mais rapidamente possível aos nossos mecanismos emocionais e
intelectuais todos os tipos de alimentos oferecidos pelo fast-food da
vida.
Para
alimentar suas máquinas, e nos dar a impressão de existir, nós lhes oferecemos
não importa qual alimento interno ou externo que eles engolem avidamente. Mas,
ao fazer isso, tornamos superficiais estes ruídos ambientais. Eles habitam em
nós, nos preenchem e nos ensurdecem. Nós nos tornamos incapazes de ouvir a vida
além deles, aquela existente mais profundamente em nós.
AS ILUSÕES DO RUÍDO
Este “eu sou” barulhento que
surfa a espuma da vida é parte de nossos mecanismos egoístas de mamíferos
humanos. Ele está irremediavelmente limitado à superfície porque é total e
exclusivamente voltado para si mesmo, para seus próprios medos e vaidades, suas
ignorâncias e suas reivindicações.
A espuma do ego, que conhece
apenas a sim mesma e seu mundo, vive como vivem todos os animais programados
por um instinto de sobrevivência e reprodução, com uma consciência limitada ao
instante da expressão.
Ele nos leva a nos preocuparmos
conosco, com nossa aparência, nossos desejos, nossos medos e engendra nossos
conflitos, nossos hábitos de traições, mentiras e julgamentos, para nos
tornarmos ou continuarmos a ser um líder de grupo com um máximo de excitações
emocionais ou intelectuais.
No entanto, dentro de nós existe
algo como uma chamada para uma vida mais autêntica, mais justa, mais
consciente. Existe como que um espaço livre não utilizado. Um espaço em que
poderíamos viver de forma diferente, evoluir, tornarmo-nos mais humanos. Mas o
ego de superfície, o ego mecânico que nada escuta, a não ser os seus acólitos e
vive apenas para a sua preservação, não entende essa outra possibilidade, este
humano natural. Ao contrário, quanto mais ele se sente quebrar e mais barulho
ele faz, mais ele se agita, mais ele se opõe.
Aquele que somos efetivamente
toma como refém o que poderíamos nos tornar, para que permaneçamos imóveis, que
não possamos lhe escapar que não possamos nos evadir em direção a um horizonte
mais vasto, onde ele não teria seu lugar.
O MEDO DO SILÊNCIO
Todas as iniciações
tradicionais, religiosas ou seculares, enfatizam a importância do silêncio para
superar nossas visões ruidosas, relativas, limitadas, e atingir a harmonia
universal da verdade. A única maneira de não ser submergido pelos ruídos
parasitas é não reservar para elas a nossa atenção, e as ouvir em nosso
silêncio interior.
Ancorados no silêncio da Loja,
podemos ver surgir, sem a eles aderir completamente, os mecanismos habituais de
nossas associações de pensamento e nossos impulsos emocionais.
Os ruídos e as agitações estão
lá e suas consistências são muito reais, mas em nosso silêncio, em nossa
ancoragem vigilante nós as vemos nascer, agitar-se, tentar ampliar-se e como
nós não mais as seguimos, não mais aderimos, elas morrem lentamente, mesmo se
forem subitamente substituídas por outra
série de ruídos e agitação.
Concretamente, ou nós resistimos
ao aparecimento de ruídos e mantemos nossa independência e nossa liberdade, ou
nos deixamos seduzir pela curiosidade de ver onde elas nos levarão, e nos
tornamos seus escravos.
O silêncio imposto em Loja nos
permite conhecer a realidade de nossos mecanismos. O desejo de ficar em
silêncio leva nossa vigilância a observar nossos mecanismos automáticos muito
frequentemente inconscientes ou arbitrariamente justificados, a não mais ser
seu escravo, ir além deles e os controlar pelo abandono.
No silêncio voluntário, vemos
surgir nossos pensamentos e emoções, nós os ouvimos se apoiar em teorias
peremptórias, nas opiniões abundantes vindas de nossa infância, de nossos pais,
de nossos professores, de nossos encontros e de nossas experiências passadas,
de toda a nossa história em geral, de nossas certezas imutáveis e confortáveis,
de nossas revoltas e de nosso gosto pela aventura.
No silêncio, tomamos a medida de
nossa contaminação por nossos ruídos antigos, e podemos observar o rodeio do
pensamento, nos outros e em nós mesmos, que se esforça para sempre impor as
mesmas certezas, as mesmas ambições, os mesmos desejos, a mesma aparência para
sermos reconhecidos, admirados e amados, com o único objetivo de preservar este
sabor falsificados de vida feliz na aparência, desde o surgimento de uma onda
momentânea que será finalmente engolida na ressaca do oceano da vida.
EM DIREÇÃO A UM NOVO TEMPO
No silêncio como ascese
compreendemos pouco a pouco a necessidade de ficar em silêncio para ouvir nossa
profundidade humana. Não se trata mais apenas de ouvir nossos ruídos, mas de
escutar nosso silêncio, a vida que abriga nosso silêncio.
Existem vários níveis de
silêncio e cada nível nos dá acesso a uma realidade diferente. O silêncio não é
fugir da vida, nem mergulhar em um isolamento, mas ele nos permite ouvir o
baixo nível sonoro do nosso ser humano.
O silêncio exterior e depois o
silêncio interior nos permitem ouvir e depois escutar a respiração do nosso ser
humano futuro. O silêncio não é um fim em si, mas o meio, a condição para tomar
consciência de uma realidade geralmente inaudível, geralmente coberta por
nossos ruídos mecânicos.
Depois de remover nossos ruídos,
resta o silêncio. O silêncio não é o oposto de ruído, o silêncio está além do
ruído. O iniciado não se submete mais aos ruídos de seus pensamentos e de suas
emoções, ele se submete ao silêncio que existe além. Ele se tornou um homem
livre e entra em um tempo de eternidade. Nesta fase, não somos nós que impomos
o silêncio, é o silêncio que reina, diz um ritual maçônico.
Quando o silêncio reina,
trata-se do silêncio do Ser, e o Ser ilumina de outra forma o mundo que
percebemos até então através de ruídos falsificadores do ego. Quando o silêncio
reina, não nos submetemos ao silêncio, mas à beleza, à majestade, à grandeza
humana e cósmica que o silêncio nos revela.
Esta nova escuta é, por vezes,
perturbadora, dolorosa, mas por mais que ela nos seja estranha, por mais que
estejamos habituados, ela é tão fascinante.
Quando o silêncio se torna o
mestre do nosso templo interior, ele reina sobre uma e outra coluna, não sobre
a loja como um lugar geográfico, mas em cada um de seus elementos humanos. Esta
submissão ao silêncio é uma submissão do homem comum ao ser humano completo.
Nascido agora como um novo homem, uma nova compreensão, uma nova palavra, uma
nova esperança na realidade do mundo.
O silêncio que reina em nós, nos
permite agora mergulhar em um novo tempo, infinito, eterno. O silêncio que
reina é o sinal de vida de nosso Ser profundo que encontrou seu espaço de
expressão.
O silêncio que reina é o sinal
de que nosso ser reina, e que ele pode viver; que nossa vida não está mais
sujeita aos caprichos do nosso ego, mas que é realmente a nossa humanidade que
se expressa.
Trata-se de um silêncio
estupefato por sua beleza humana, de um silêncio da inteligência, de um
silêncio que olha e escuta, de um silêncio que compreende e que ama de um
silêncio que é a tomada da palavra pelo Ser capaz de capturar simultaneamente o
relativo e o objetivo, a materialidade e a espiritualidade, o finito e o
infinito.
O silêncio que era uma porta
tornou-se um estado de Conhecimento, de Consciência e de Amor. Este silêncio
autêntico se desloca conosco, não importando o que façamos, ou o que nós
sejamos. Ele está sempre presente, porque este silêncio está em nós no espaço e
no tempo, além do tempo e do espaço em toda a nossa eternidade.
Agora que sobrevoamos o segredo
do silêncio, resta-nos trabalhar, observar, e nos esforçar para descobrir como
fazer para realizar concretamente em nós mesmos, da forma como os rituais nos
indicam, como via da sabedoria, da força e da beleza: “Venerável Mestre, reina
o silêncio em ambas as colunas.”
Autor: Alain Pozarnik
Tradução: José Filardo
Tradução: José Filardo