1 – INTRODUÇÃO
Nossa sagrada Ordem utiliza um complexo universo simbólico para transmitir seus
mistérios aos iniciados. Tais elementos funcionam como um sistema de chaves e
códigos que possibilita, quando adequadamente elaborado, a ocorrência de uma
fuga do mundo trivial, da vida efêmera ou profana, rumo ao universo do sagrado.
Este poderoso processo psíquico, conhecido como “transcendência
maçônica”, é, sem dúvida, a justificativa principal para que tão elaborados
rituais, por nós desenvolvidos, persistam quase incólumes ao longo das eras.
Neste breve trabalho sugerimos uma forma de interpretar, por
meio da análise da estrutura básica de um templo maçônico, como se apresenta a
nós esta intrigante e poderosa jornada mágica que se repete a cada sessão
ritualística.
Tal qual faríamos em uma prancheta de arquiteto, vamos traçar a
linha mestra que encadeia este fenômeno que transpassa os quatro planos de
nossa realidade, partindo do macro para o microcosmo, do todo para o
individual, da justificação final para a origem do universo, apenas entendendo
o sentido de alguns reparos estruturais de nossas oficinas.
Esta singela reflexão, permeando através do simbolismo essencial
em loja, nos mostra como esta transcendência justa e perfeita nos conduz com
força e vigor pelos mais profundos mistérios de nossas almas.
2 – AS TRANSCENDÊNCIAS
A interpretação mais antiga dada a este conceito deriva da relação dos homens
com a idéia de divindade, em um sentido teológico. Assim, se considera o divino
como inacessível às coisas terrenas, pois seriam esferas totalmente distintas,
manifestando uma relação dialética permanente.
Outro sentido se refere aos conceitos aristotélicos, difundidos
na idade média por São Tomás de Aquino (1.225-1.274), que definiam como
transcendente tudo que se enquadra nas categorias de unidade, verdade e
bondade. Para Hume (1.711-1.776) e Kant (1.724-1.804), transcendental é tudo
aquilo que nossa mente constitui a priori, antes mesmo de qualquer
experimentação, havendo assim uma complexa interconexão entre a capacidade de
estar consciente de certo conceito e a habilidade de experimentar-se o universo
das coisas.
O transcendente estaria fora de nós, mas acessível pela
capacidade intelectual em captar sua essência. Hegel (1.770-1.831) combateu, em
parte, este conceito kantiano, pois argumentava que é preciso ultrapassar a
fronteira entre o conceitual e o experimental para sabermos ao certo onde este
limite se encontra, e assim, logicamente, já se constitui uma transcendência o
fato de deter o conhecimento, independentemente de qualquer ação posterior.
No caso específico de nossos trabalhos, saindo deste
academicismo ortodoxo, falamos em transcendência quando nos referimos às
experiências vivenciadas por todos, em determinados momentos, que representam o
ir além de um determinado plano da existência.
Tal fenômeno é motivado pela estimulação psíquica que certos
fatores determinam e que nos permitem sentir que nosso ser trafega por
diferentes patamares ou estruturas da realidade. Estes estímulos são de
inúmeras naturezas, manifestando-se tanto em nosso cotidiano quanto em
situações de meditação.
Desde a simples contemplação de uma singela obra de arte até os
mais profundos momentos de reflexão advindos de práticas ritualísticas
elaboradas, somos submetidos constantemente a estas possibilidades.
3 – OS QUATRO PLANOS DA EXISTÊNCIA
Os planos que delimitam nosso ser foram classificados por diversos pensadores,
ao longo das eras, de maneira didática. Vamos considerar, visando conciliar
estes estratos de nossa psique com a jornada mitológica do maçom executada no
ciclo de loja simbólica, quatro universos contínuos e interdependentes.
3.1 – Plano do macrocosmo ou do universal (átrio)
No caso de nossas Sessões, o obreiro aguardando no átrio o início dos trabalhos
experimenta os últimos lampejos de sua experiência no plano do mundo exterior.
Ali ele deixa todas as preocupações, tensões e pensamentos voltados às suas
relações com as outras pessoas e as coisas, ou seja, a totalidade do universo
exterior que interage ininterruptamente com ele.
Este primeiro plano, chamado de macrocosmo, representa nossa
mais elementar perspectiva da realidade. Circunscreve tudo que se percebe como
exterior ao ser, tanto em relação ao seu corpo quanto em relação à sua
consciência. Falamos do mundo natural ou das coisas, que abrange desde os entes
físicos até a própria organização social, política e econômica. Esta área
conflituosa é o que chamamos, esotericamente, do profano, em suas múltiplas
manifestações.
3.2 – Plano do microcosmo ou de si-mesmo (ocidente)
Com o cair das trevas, seja devido à chegada da noite ou das estações da
escassez (outono e inverno), surgia uma nova forma de entender a realidade.
Agora, um novo universo se impõe, com a perda da noção da tridimensionalidade.
Nestes momentos as mentes se voltam mais para si próprias, pela relativa
inacessibilidade do mundo externo ou macrocosmo.
Ultrapassando o mundo das coisas, dos elementos extrínsecos,
nossa percepção se foca a nós mesmo – é a chamada reflexão, no sentido de que
nossos pensamentos se voltam para o mais profundo de nossa alma. Adentramos ao
mundo do sagrado, de percepção de si-mesmo. Os gregos chamavam esta forma de
assimilação da existência como o domínio do plano da psique, da alma ou da
personalidade. Nesta fase, apesar da mente estar ativa e consciente, os
sentidos físicos já não operam na plenitude. Assim, são as percepções
interagindo que dominam as ações.
Não nos interessam mais as relações que temos com o mundo fora
de nós, e sim as reverberações internas que elaboramos, enquanto seres que
possuem esta capacidade de abstração. Em loja adentramos a este campo do
microcosmo quando chegamos ao ocidente, com suas doze colunas como as constelações
do firmamento, a abóboda celeste acima e a perspectiva de seguir em frente em
nossa jornada, já no campo do sagrado.
3.3 – Plano do mundo dos mistérios (oriente)
Em determinados momentos, quando os homens são vencidos pelo sono e adentram
assim ao mundo dos sonhos, ou quando experimentam transes xamânicos, mais um
portal se abre. O inconsciente se impõe. Uma viagem a um universo estranho, a
uma realidade paralela, a um plano mágico, se inicia.
Nesta condição, os bravos atingem um mundo pictórico, delirante
e intrigante, onde estranha e absurdamente se deparam com seus antepassados –
que há muito habitam o oriente eterno. O que estaria se passando nas mentes
nestes momentos? Os animais imaginários, além de bizarras figuras
antropozoomórficas, interagem com os homens, em relações ora amistosas, ora de
combate.
Os idosos adquirem a higidez dos jovens, e os doentes se curam.
Os fortes, nesta nova realidade, manifestam poderes extraordinários, voando,
mergulhando, se jogando de abismos, enfrentando feras com as mãos nuas. Estamos,
logicamente, em um universo místico. As dimensões se contorcem, o tempo não
existe – ali tudo é possível. Como temos nossos amigos e parentes falecidos de
volta à vida, seria o mundo dos mortos? A esta pergunta, os magos ancestrais
respondiam que sim.
Sem entender racionalmente este fenômeno, tão complexo,
inexplicável e inexpugnável e complexo, batizaram este universo como sendo o
mundo dos mistérios, dos enigmas, dos mortos. Este estágio da personalidade
humana é representado, em nossos templos simbólicos, pelo plano do oriente –
onde os grandes mistérios da gnose e da sabedoria primordial começam a se
revelar aos verdadeiros iniciados.
3.4 – Plano do Absoluto (além-do-oriente)
Em algum momento do passado, um sábio, certamente dotado de carisma – aquela
qualidade que não sabemos definir, mas que se traduz por fornecer um tremendo
poder de influência a quem a possui – propôs uma nova interpretação a estas
experiências transcendentais que vivenciamos, em loja ou na vida profana.
A justificativa é que deve
haver um projeto por trás destas realidades, algum elemento gerador, alguma
origem-causa-sentido nesta situação toda. Alguém ou algo deve ter arquitetado
esta realidade multidimensional, e a nós, simples mortais, não é possível
definir exatamente o que isto é ou representa. Apenas temos contato com esta
entidade ou ser originário nos momentos de sonhos, de transes ou no post
mortem.
Nesta condição tateamos este eterno, esta universalidade ou
absoluto, pelas inúmeras formas com que tal estrutura se revela aos poucos
escolhidos – os chamados profetas. Estes teriam, na visão esotérica, atingido a
luz ou conquistado a verdadeira sabedoria gnóstica. Seja como for, se
estabelece assim o quarto plano de nossa jornada. Vamos além do oriente,
buscando algum ponto virtual, uno e indefinível, que pode ser no centro do
olho, ou no delta, no Sol ou na Lua, ou em qualquer outra figura simbólica ali
posicionada.
4 – CONCLUSÃO
Antes de chegarmos à loja, estamos vivendo exclusivamente no universo do
macrocosmo, da realidade física ou natural, e dos elementos que norteiam nossa
vida profana e banal. Este plano deve, obrigatoriamente, ser exercido e
vivenciado desta forma, ou seja, fora das colunas, barrado de maneira absoluta
no limiar do átrio.
Quando nos paramentamos e a hora de início dos trabalhos se
aproxima, nossos espíritos se preparam para uma transformação. Vamos passar
para a hora da noite, onde nossas consciências serão se voltarão para os
labirintos de nossa mente. Exatamente ao meio dia começa o Sol seu longo e
derradeiro declínio – a noite começa. Ao se abrir o pórtico, saímos do mundo
profano e caímos na seara do sagrado, abandonando o universo da
tridimensionalidade para chegar ao mundo da reflexão, da meditação e da
sensibilidade exacerbada, do intangível e da espiritualidade. Este campo
pertence, simbolicamente, ao ocidente. A janela de nossa alma se volta para os
desígnios de nosso autoconhecimento, do gnothi saulton socrático.
Ainda estamos conscientes, mas já nos preparamos para os grandes
mistérios que se apresentarão. A luz é fraca, como aquela vinda dos astros, da
lua e das fogueiras ancestrais. Estamos envoltos pelas trevas físicas,
concentrados e reflexivos, unidos na mais sólida fraternidade e com os sentidos
operando no limite.
A balaustrada posicionada entre o ocidente e o oriente divide a
loja e nossa mente em dois compartimentos. Transpondo este adereço, saímos do
mundo do si-mesmo e conquistamos o terreno dos sonhos, do inconsciente, da
espiritualidade, dos mistérios e da magia. Este só é atingido após a subida dos
4 degraus, que representam o domínio sobre as 4 ciências elementares, de acordo
com Pitágoras – Aritmética, Geometria, Astrologia e Harmonia. O oriente
simboliza exatamente o universo do subconsciente, onde imperam os mistérios
mais ocultos.
Só após vencer estas três etapas preliminares, o iniciado pode
acessar a verdadeira sabedoria. O último portal se apresenta. Experimentando,
finalmente, um sutil contato com a universalidade, com o todo eterno e
absoluto, com algo superior ou princípio gerador, chamada também de geometria
elementar que projetou e governa todos os mundos, o poderoso desbravador dos
limiares da existência tem seu ciclo místico fechado.
Esta, sem dúvida, pode ser considerada uma síntese da jornada
simbólica mais justa e perfeita jamais empreendida por qualquer ser humano, em
busca da verdade.
Carlos Alberto Carvalho Pires, M:.M :.
A:.R:.L:.S:. Acácia de Jaú – 308 Or:. de Jaú – SP, Brasil
REFERÊNCIAS:
1 – Boni, Luis A, “Finitude e Transcendência” 1ª Edição, Editora Vozes, 1.999;
2 – Genette, Gerard, “Obra de Arte – Imanência e Transcendência”,1ª Edição,
Editora Litera Mundi, 2001;
3 – GLESP – “Ritual do Simbolismo do Aprendiz Maçom”, 2.001;
4 – Jaguaribe, Hélio “Transcendência e Mundo na Virada do Século”, 1ª Edição,
5 – MacDowell, John, “Saber Filosófico, História e Transcendência”, Editora
Loyola, 2.002;