Através da história tem o homem manifestado uma tendência, que diríamos
inata, de lutar e trabalhar em grupos, de se compor em organizações e formar
associações, quer procurando a satisfação de seus anseios individuais, quer
buscando alcançar suas metas grupais, a que isoladamente não poderia jamais
chegar.
Houve, até, agrupamentos humanos, como os colégios funerários romanos,
que visavam unicamente dar a seus membros, no final de suas vidas, um enterro e
uma campa decentes.
Floresceram as Guildas e corporações intensamente durante toda a Idade
Média, estendendo? Se quase até o final da Idade Moderna. Essas associações
tinham o escopo principal de agregar os profissionais de uma determinada
atividade, tanto para se protegerem mutuamente, como para tratar da defesa dos
interesses gerais da classe.
Mais recentemente, os historiadores concluíram através de suas pesquisas
que esses colégios, corporações ou Guildas, além de sua finalidade material e
ostensiva, também tinham entre seus membros ligações mais íntimas de caráter
religioso, e que sua reunião, de um modo geral, ser realizavam acobertada pelo
segredo e obedeciam a determinados rituais e esquemas rígidos de trabalho.
É inegável, porém, que todas tinham sempre o fato de um interesse comum
ligado ao modo de vida dos associados, principalmente sob o aspecto
profissional. Os rituais e senhas de reconhecimento eram unicamente um elemento
de ligação entre os membros, mantendo não somente o grupo unido, mas também
tornando as reuniões mais rigidamente ordenadas e produtivas.
Qualquer cidadão que quisesse pleitear seu ingresso deveria
identificar-se com o grupo, e assumir o compromisso de trabalhar
incansavelmente pelo bem comum. A identificação de interesses com os dos
futuros companheiros era essencial, e cada candidato era rigorosamente
submetido a uma sindicância prévia para analisar suas verdadeiras intenções e
capacidades.
Tentava-se evitar, a todo custo, que um iniciado viesse a prejudicar a
harmonia do grupo. Por isso, cada associação estabelecia um perfil avaliativo
do cidadão a ser iniciado, e somente quem a ele perfeitamente se adaptasse
lograria ser aceito.
A definição desse perfil era considerada uma necessidade indispensável
para que a organização pudesse seguir homogênea e ativa na luta por seus
ideais. A fixação das características essenciais do candidato e sua exata
definição não poderiam ser desprezadas sob nenhuma forma sem o perigo de graves
danos à comunidade.
Temos aí uma premissa básica a ser seguida se quisermos um grupo unido e
coeso, capaz de atingir suas finalidades, grupais ou individuais. Não se pode
permitir a existência de vozes contrárias e destoantes comprometedoras da boa
ordem dos trabalhos. A história nos diz que as Guildas, corporações e colégios
seguiam rigorosamente esse estatuto, observância que lhes deu vida por mais de
mil anos.
É muito natural, portanto, que a Maçonaria, como toda e qualquer
sociedade que se proponha altas finalidades sociais, estabeleça um rígido
perfil para enquadramento dos candidatos à iniciação, perfil esse que deve
delinear com precisão as qualidades básicas mínimas e indispensáveis desejadas.
“Já é nosso hábito dizer que somente damos ingresso a homens livres e de
bons costumes”. Essas qualidades, contudo, nos parecem absolutamente vagas e
imprecisas, por não serem capazes de definir a verdadeira personalidade de
alguém.
É mister procurar com denodado empenho uma elaboração mais exata para o
perfil das pessoas que queremos trazer para o nosso meio e engajar na luta
pelos ideais maçônicos. Necessitamos, na realidade, de verdadeiros homens de
iniciativa, com decisão de luta pelo bem comum de nossa sociedade, que possam
efetivamente envolver-se com o nosso grupo, com disposição também de dedicar-se
sem esmorecimento à elevação de seu nível cultural individual.
Ser "livre e de bons costumes" seria apenas um poluo de
partida para analisar um candidato; porém em segundo lugar, mas não
secundariamente, aquilatar outras qualidades imprescindíveis como disposição
para o estudo sério, para a filantropia, para a luta pela solução de problemas
sociais, disposição para lutar, enfim, por uma boa causa.
Em suma, queremos homens "livres e de bons costumes" sim, mas
também culturalmente avançados, verdadeiros líderes sociais, intensamente
dedicados à busca da perfeição não somente em si mesmo mas em toda a
humanidade. É neste ponto que se origina a maior parte dos problemas internos
de nossa Ordem.
É notoriamente difícil encontrar candidatos que se ajustem com perfeição
a esse perfil, ainda mais porque essa exigência tolhe o desejo de muitas Lojas
que querem a todo custo aumentar os seus quadros, como se isso representasse
algum fato positivo em seus trabalhos.
Mas, analisemos mais pormenorizadamente as duas qualidades referidas
inicialmente, e que sempre mencionamos em nossos trabalhos: "Livre e de
bons costumes". Verificaremos que se presta a interpretações ambíguas,
pois têm um sentido demasiadamente amplo e indefinido.
O que é um homem livre?
Livre para ir e vir conforme assegura a Constituição Brasileira? Livre
em contraposição a escravo? Livre de laços de juramento com outras associações
similares? Livre das imposições do seu meio social? Livre de pressões de
parentes e amigos? Livre de pensamento?
Seria, ainda, ser livre contar com a coragem suficiente para arrostar
com a reprovação da sociedade para com todo aquele que tenha a ousadia de ser
diferente, diferente apenas, do pensar da maioria?
Provavelmente naqueles primeiros tempos em que a Maçonaria Especulativa
começou a substituir à antiga Maçonaria Operativa, quando as Guildas de
pedreiros vinham perdendo sua finalidade em virtude da vulgarização dos
segredos de construção, a expressão "livre" era entendida em seu
sentido literal, ou seja, livre da peia de ser escravo ou servo.
Evidentemente não é mais essa a conotação de liberdade que hoje
referimos, eis que no oriente, no sentido estrito da palavra, não temos mais
escravos, embora devamos admitir que uma família que receba apenas um salário
mínimo esteja em piores condições do que um escravo, pois a este se garantiam a
comida, a moradia e o vestuário.
O termo livre tem hoje uma interpretação muito mais nobre em nossas
sindicâncias, sendo definida em sentido mais de liberdade mental do que física.
Entendemos como homem livre, ou deveríamos sempre entender, aquele com coragem
suficiente e evidente capacidade de escolher livremente os seus passos, e
determinar ele próprio os rumos de sua vida. Homem livre é um homem de
iniciativa, dono de seu próprio destino, que ousa pensar sem imposição de
limites para isso.
Mas, poderá um homem livre assim praticar alguma religião carregada de
afirmações dogmáticas, e ser ao mesmo tempo um maçom convicto? Evidentemente
que sim, desde que ele adote essa fé e seus dogmas como uma livre escolha sua,
como urna conclusão de seu processo cognitivo, como um ponto de chegada de sua
busca intelectual; desde que ele aceite esses dogmas como uma verdade plausível
perante sua consciência.
Certa vez, em viagem, identifiquei-me junto a alguém que de antemão
sabia ser maçom. Ele correspondeu, mas imediatamente esclareceu que abandonara
nossos trabalhos porque seu pároco, ele era católico, lhe dissera que teria de
optar entre Maçonaria e Igreja, pois as duas se excluíam mutuamente.
Evidentemente esse ex-Irmão não chegou a conhecer nossa Ordem, como não
conhecia sua própria religião. Não era tampouco, seu procedimento o denunciava,
um homem livre; tinha necessidade de alguém a pensar por ele. Possivelmente
teria sido mais uma vítima da preocupação que algumas Lojas têm de aumentar os
seus quadros. Uma sindicância um pouco mais rigorosa teria mostrado que ele não
deveria ter sido iniciado.
Liberdade não é uma aparência externa do indivíduo, é antes uma condição
interna que permite agir sem condicionamento e sem constrangimento, sem
limitações impostas por outrem. Liberdade é uma posição conscientemente
assumida, tolerada apenas a limitação da própria capacidade intelectual. Essa
posição não será revelada pelo comportamento visível de um candidato, somente o
seu passado o revelará.
Mas, há um segundo quesito' que costumamos exigir dos que desejam a
Iniciação: ser um homem de bons costumes. Esta é uma expressão muito mais ambígua
ainda. Tentemos defini?Ia e veremos quantas dificuldades se nos depararão.
"De bons costumes" é popularmente considerado aquele hábito que leva
o cidadão a proceder de acordo com a maioria de seu meio social, a seguir os
usos gerais de procedimento adotados como corretos pelo grupo dominante.
Conheço homens que são considerados "de bons costumes" apenas
porque publicamente se comportam segundo um padrão preestabelecido. Não têm
títulos protestados, são pontuais no pagamento de suas dívidas, têm ficha policial
sempre limpa, mantêm oficialmente um lar com esposa e filhos, em suma, na
aparência externa, nada se provará contra eles, e uma sindicância superficial
não os condenará. Mas no seu foro íntimo, são verdadeiros tiranos com seus
inferiores e seus familiares, fazem quaisquer negócios escusos quando podem
esconder a mão, aceitam e dão propinas e subornos; são cidadãos que pensam
exclusivamente em seu próprio bem-estar e posição social.
Não se pode naturalmente definir um homem por suas aparências sociais.
Ser realmente livre e de bons costumes são facetas muito íntimas de foro
interno de cada um, que não podem ser aquilatadas por uma mera e superficial
análise externa, muitas vezes eivada de considerações e influências pessoais.
Há que se recorrer a outros meios que não esses prismas para analisar
corretamente o perfil moral de um homem. O seu passado deve ser percorrido.
Como disse muito sabiamente o escritor grego Políbio, não é o presente que
define um homem, mas sim os atos e fitos de sua vida pregressa.
Percorramos a estrada da vida de nossos candidatos. Procuremos ver o que
eles já fizeram pelos seus semelhantes, se eles têm efetivamente participado de
atividades sociais, se já têm voluntariamente assumido trabalhos comunitários,
se têm demonstrado espírito de iniciativa.
Se um homem já se aproxima da metade de sua vida e nunca participou
ativamente da solução dos problemas de sua comunidade, se é adepto de uma
religião e se limitou a assistir passivamente aos cultos em ocasiões
obrigatórias, se em matéria de cultura nunca foi além da leitura superficial de
jornais e revistas, poderemos afirmar com certeza que é assim que ele será em
nossas Lojas.
Jamais nossa Ordem poderá contar com ele. Não é por entrar para a
Maçonaria que alguém se tornará homem atuante do dia para a noite, ou virá a
ser um homem interessado em seu desenvolvimento pessoal. Jamais será um
verdadeiro Maçom.
Não poderemos aceitar como digno de Iniciação alguém que de positivo
apresente apenas a característica de ser um bom cidadão, ou que seja
considerado de bons costumes por não ter feito mal a ninguém. Essa máquina com
que datilografo estas linhas também pode ser considerada boa porque não faz mal
a ninguém; ela é exatamente como aquele cidadão, apenas bom, mas que para
produzir algo proveitoso deve ser permanentemente manejado.
Ao acolhermos a apresentação de novos candidatos, deveremos fazer
prevalecer sempre o bom senso e a responsabilidade, tanto dos apresentantes
como dos sindicantes, do corpo da Loja, da Administração Central do Grande
Oriente. A análise dos dados apresentados deve ser profunda e cuidadosa. O
passado do apresentado deve ser à base de uma pesquisa muito ampla e
conscienciosa.
As liberalidades para com amigos e pessoas por ocuparem cargos de
destaque têm permitido que entrem para nossa Ordem muitos candidatos que nada
mais são do que simplesmente livres (não escravos) e de bons costumes (apenas
bons cidadãos), mas cujo passado nada mais mostra do que um caminho deserto sem
nada de positivo a ser anotado.
A condescendência, as liberalidades, os precedentes são o grande mal que
afligem o funcionamento de muitas associações, e principalmente não poucas de
nossas Lojas.
Como são raros os candidatos que poderiam se enquadrar no perfil de
perfeição que tentamos delinear, e como muitas Lojas deixam entrever um
desusado interesse em ampliar o quadro de seus obreiros, possivelmente para
encobrir a falta de outras iniciativas mais substanciosas, verifica?Se um
apressamento dos cerimoniais de Iniciação. Freqüentemente, por isso, são
iniciadas pessoas que nada trarão para nossa Instituição, muito ao contrário,
sua inércia será muito prejudicial e contagiante.
E a observância do perfil rigoroso antes estabelecido vai se abrandando.
As considerações de amizade e uma indisfarçada admiração por quem ocupa cargos
públicos importantes, forçam um relaxamento do processo de seleção. De
concessão em concessão se inicia uma reação em cadeia.
Os mesmos que foram iniciados em virtude de uma sindicância facilitada,
quando por sua vez apresentarem os seus candidatos usarão um perfil ainda mais
diluído.
O nível geral da Ordem, como estamos assistindo nesse momento histórico,
vai decaindo, não no sentido moral evidentemente, mas pela ausência de homens
dinâmicos com quem a Maçonaria necessita contar para poder atingir os seus
altos objetivos. A própria freqüência aos trabalhos, por vezes muito aquém do
desejado, é um atestado desse fenômeno.
Embora devamos admitir que a condescendência se tomasse quase universal,
afetando em todo mundo as associações de qualquer natureza, ela não deveria
existir na Maçonaria, dada a seriedade com que costumamos encarar nossos
trabalhos. Essa reação em cadeia também vem nos atingindo, levando para baixo o
nível de nossa eficiência, tão decantada em outros tempos.
Nossa atenção a esse fato social deverá ser dobrada, agora, para que não
deixemos chegar esse nível a um patamar perigoso, pois a experiência evidencia
que quando isso ocorre à própria existência da associação se vê ameaçada.
Muitos membros de nível cultural mais elevado poderão se afastar
silenciosamente por não encontrarem guarida para seus esforços pela dinamização
da luta por ideais que tanto apregoamos serem nossos.
Qualquer associação que se permita cair no conceito de seus próprios
membros está chegando a um limiar indesejável e perigoso para a sua própria
sobrevivência.
Nossa Ordem nunca poderá ser maior ou melhor do que o forem os Irmãos
que a constituem. Nem se aceitará aquela observação de alguns pusilânimes que
dizem querer deixar a Instituição porque não encontraram nela o que procuravam,
pois habitualmente nada fizeram ou fazem para modificar a situação. A Maçonaria
será tão grande e boa quanto nós, os Irmãos, se formos grandes e bons
individualmente.
Esses que assim pensam são exatamente aqueles que em sua vida pregressa
nada fizeram de grandioso e meritório, e entraram na Maçonaria pensando que ela
faria isso por eles; pretendiam apenas engrandecer-se à custa dos Irmãos.
Cuidemos para que não entrem para o nosso grupo aqueles que Cristo já
rejeitou como nem frios nem quentes: os medíocres.
Os pusilânimes não fazem história, são apenas levados de roldão.
Percorramos a trilha da história da humanidade e veremos que ficaram apenas os
nomes dos que foram ou muito bons ou muito maus. Procuremos ficar na evidência
por termos sido muito bons, muito grandes em nossa luta por uma vida melhor,
por uma MAÇONARIA GRANDE E UNIDA.
Ir.’. Ambrósio Peters
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