Desmistificando uma Convenção Tipográfica Francesa
O triponto maçônico não passa de uma convenção tipográfica francesa.
Ponto. Mas não, senhores: preferimos inventar interpretações esotéricas dignas
de um esoterismo de almanaque. Aí vem o irmão, de avental e luvas brancas,
jurar de pés juntos que o triponto representa os três graus simbólicos, ou o
Esquadro e Compasso com o Livro da Lei, ou — pasmem — as pirâmides de Quéops,
Quefren e Miquerinos. Alguns, em surto místico-quântico, chegam a falar em
prótons, elétrons e nêutrons. Pelo amor de Deus!
Isso é o que chamo de senso comum maçônico: uma espécie de vulgata
interpretativa que naturaliza práticas regionais como se fossem universais,
essenciais, ontológicas. É a nescionaria em operação — esse ritual do não-saber
que se traveste de conhecimento profundo. É importação acrítica. É viralatice
hermenêutica.
A verdade — essa coisa simples, essa obviedade solar — exige que voltemos
às origens. Antes de 1700, não existia triponto maçônico — existiam apenas
reticências ou pontos abreviativos usados em manuscritos latinos. Desde os
escribas romanos, os grupos de pontos e sinais de abreviação eram ferramentas
gráficas, não místicas.
Adriano Cappelli documenta o seu uso sistemático no século XIII (Lexicon
Abbreviaturarum, Milano, Hoepli, 1899), e o próprio Justiniano já as
restringia no Corpus Juris Civilis (Digesto,
XLVIII, 10, 32), no século VI. Philippe le Bel chega a proibi-las formalmente
em 18 de dezembro de 1304 (Ordonnance) — o que mostra que o problema era
paleográfico, não metafísico.
O triponto maçônico propriamente dito nasce na França iluminista. A mais
antiga menção conhecida está nos registros da loja La Sincérité, Oriente de
Besançon, de 1764, onde aparecem fórmulas abreviadas como G∴O∴D∴F∴ (conforme Chapuis
documenta em Histoire du Rite Écossais Ancien et Accepté, Paris, Guy
Trédaniel, 1989, p. 21). O Grande Oriente da França, segundo Jean-Marie
Ragon, Orthodoxie Maçonnique (Paris, Bailleul, 1853, p. 214), em 12
de agosto de 1774, oficializa a prática em circular administrativa.
Ou seja: o triponto é inovação iluminista, não legado atlante. Esta
padronização coincide com a reorganização burocrática do GODF sob o Grão-Mestre
duque de Chartres, o que explica a ênfase no aspecto documental e caligráfico,
não ritual.
O costume de abreviar palavras, cumpre lembrar, surgiu com os gregos e foi
extensamente explorado pelos romanos, que criaram inclusive a regra de duplicar
a letra inicial nas abreviações de termos no plural — regra ainda existente na
abreviação maçônica.
Se sempre adotadas em atas e sinalizadas por traços, barras ou
reticências, é natural que nas atas maçónicas francesas as abreviações
ganhassem um sinal correspondente com a instituição: uma variação das
reticências lembrando o símbolo geométrico mais importante, o Triângulo.
Não demorou para que, pelo costume da escrita e exclusividade do uso, o
triponto ultrapassasse a sua utilidade caligráfica e alcançasse a assinatura
dos Irmãos.
Simples assim. Sem mistério. Sem Egito. Sem alquimia. Sem física quântica.
É convenção paleográfica, não cosmologia iniciática.
Mas o (Maçom) brasileiro — ah, o brasileiro! — na sua condição periférica,
recebe o Rito Escocês Antigo e Aceito de matriz francesa e naturaliza tudo: o
triponto vira “essência” da Maçonaria. Converte regionalismo em universalismo.
E aqui está o problema central: o triponto não é universal. Nunca foi. Nunca
será.
A tripontuação é inexistente nos manuscritos da Grossloge von Hamburg
(1801) e da Observância Draskovic (1775). O Schrödersche Lehrart (Hamburgo,
1801) de Friedrich Ludwig Schröder (Hamburg, 1801) não apresentam triponto.
Nenhum manuscrito da Grande Loja de Hamburgo o utiliza.
O Systema Constitutionis Latomiæ Libertatis da Observância
Draskovic (Zagreb, 1775) é redigido em latim clássico, sem qualquer uso de
pontos triangulares — as abreviações seguem o modelo jurídico latino (MM. para Magister
etc.). A Observância utilizava código especial para correspondências baseado em
letras-chave por grau (T, N, E), mas jamais usou o triponto.
Os seus documentos seguiam convenções paleográficas centro-europeias. A
simplicidade tinha motivação prática: sigilo absoluto em contexto de repressão
imperial. As lojas reuniam-se em locais variáveis, inclusive “em campos e
florestas”, onde “com algumas mesas, cadeiras, três velas, papel, canetas e
tinta” formavam uma Loja perfeita.
Não havia triponto porque não havia necessidade de triponto. A tradição
linguística e tipográfica era outra.
As lojas anglo-saxônicas usam abreviações lineares, sem triângulo.
Os Proceedings da United Grand Lodge of England (fundada em
1813) não possuem triponto — as abreviações são lineares e separadas por pontos
simples (G.L., R.W., W.M.). Os Transactions da Grand
Lodge of Pennsylvania (desde 1731) tampouco adoptam o formato
francês. A França a inventou; o resto do mundo, com razão, a dispensou.
Mas isso não importa para o fundamentalismo “tripontista” brasileiro, que
trata esse acidente histórico como se fosse dogma revelado no Monte Sinai.
E o delírio místico sobre o triponto nasce cem anos depois do seu uso.
Ragon (1853) nunca lhe atribuiu valor simbólico universal — apenas registrou a
prática como convenção administrativa. Foi Oswald Wirth, em Le Livre du
Compagnon (1894, p. 51), quem começou a associar o triângulo equilátero à
divindade, influenciado pelo simbolismo hermético de Éliphas Lévi — é aqui que
nasce o mito simbólico do triponto. O simbolismo do triponto é
invenção tardia. Desde então, cada repetidor multiplicou o eco sem retornar à
fonte.
Gadamer, em Wahrheit und Methode, ensinou-nos que toda
compreensão é situada, que carregamos preconceitos (no sentido
hermenêutico, Vorurteit) que condicionam a nossa leitura do mundo. O
problema é quando o preconceito vira pré-compreensão inautêntica: quando
naturalizamos o contingente e perdemos a capacidade crítica.
É exatamente isso que ocorre com o triponto na Maçonaria brasileira.
Transformamos convenção francesa em universalidade maçônica. Esquecemos que a
palavra clara é o verdadeiro instrumento da iniciação, e que a forma
tipográfica é mero acidente histórico-cultural.
O triponto vira fetiche. Deixa de ser o que é — convenção tipográfica
francesa de 1774 — e passa a ser tratado como coisa em si, como substância
metafísica, como essência maçónica universal. O que começou como sinal
tipográfico em 1764 virou fetiche iniciático em 1894. O erro não está no uso —
está na crença.
Então, meus irmãos, sejamos honestos: a verdade é muito melhor do que
imaginar que estamos desenhando Quéops, elétrons ou enxofre quando assinamos. O
triponto não é mistério sagrado. É convenção francesa. Respeitável? Sim.
Legítima? Claro. Universal? Absolutamente não.
Confundir regionalismo gráfico com essência filosófica revela
desconhecimento da real diversidade das tradições do Ofício. É colonialismo
simbólico travestido de universalismo. É a crença de que só é Maçonaria “de
verdade” aquela que replica o padrão francês, ignorando que vastas regiões da
Maçonaria mundial — Alemanha, Hungria, Croácia, Inglaterra, Estados Unidos —
nunca conheceram nem precisaram do triponto.
Portanto, quando assinar com o seu triponto, faça-o conscientemente: você
está usando uma convenção tipográfica francesa do século XVIII, não um símbolo
cósmico universal. E isso não diminui em nada o valor da sua assinatura nem da
sua condição de Maçom. Apenas a torna historicamente situada — que é como as
coisas são na realidade, fora do esoterismo de botequim que confunde convenção
paleográfica com revelação iniciática.
Em resumo: há mais história do que mistério no triponto. O triponto não é
símbolo universal — é a assinatura do provincianismo disfarçado de tradição.
Rui Badaró, Meister vom Stuhl da ARLS Gotthold Ephraim Lessing nº 930, Or.
de Sorocaba / SP, GLESP
Referências
- CAPPELLI,
Adriano. Lexicon Abbreviaturarum. Milano: Hoepli, 1899.
- RAGON,
Jean-Marie. Orthodoxie Maçonnique. Paris: Bailleul, 1853.
- CHAPUIS,
Paul. Histoire du Rite Écossais Ancien et Accepté. Paris: Guy
Trédaniel, 1989.
- LAXA,
Eugene; READ, Will. “The Draskovic Observance.” Ars Quatuor
Coronatorum, Vol. 90, 1977.
- SZENTKIRÁLYI,
Miklós; VÁRI, László. Szabadkőművesség Magyarországon. Budapest:
Akadémiai Kiadó, 2018.
- WIRTH,
Oswald. Le Livre du Compagnon. Paris, 1894.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
É livre a postagem de comentários, os mesmos estarão sujeitos a moderação.
Procurem sempre se identificarem.