A palavra
“silêncio” está associada a segredo e sigilo. Segredo é aquilo que não pode ser
revelado, o que existe de mais recôndito na pessoa, a significação oculta dos
seus sentimentos, desejos e pensamentos. Substituam a letra E pela letra A e a
palavra segredo torna-se sagrado – algo inviolável, puríssimo, santo; aquilo
que não deve ser violado e que não se deixa corromper.
O jogo de
xadrez muito se assemelha à vida maçônica, não apenas pelo tabuleiro de casas
alternadamente brancas e pretas ‒ como o Pavimento Mosaico. Há passos para cada
peça e regras imutáveis para o ataque e captura de determinadas posições. Há a
promoção dos peões que alcançam a oitava fileira e todo esforço se resume na
proteção do rei, peça chave ou Landmarkiana.
O sigilo,
por sua vez, pertence à estratégia e ao dever ético que impede o jogador de bem
a revelar tácticas confidenciais ligadas a determinado ofício ou condição. O
oposto do silêncio é a tagarelice, apanágio dos indiscretos ‒ são os “sapos”
que se intrometem no jogo com palpites desarrazoados. Falar muito – quebrar o
silêncio – é o primeiro passo em direção à profanação das condições sagradas,
dentre as quais a vida e a honra são as mais importantes.
O meu
amigo médico, Dr. J. N. F. defende a tese de que falar muito emagrece; todo
gordo – diz ele – é um sujeito calado, cheio de segredos. Assim diz aquela
música antiga:
“Quando eu
morrer quero ir em fralda de camisa, defunto pobre de luxo não precisa!
Cinquenta velhas desdentadas e carecas hão de ir à frente tocando rabeca; e um
velho bem barrigudo irá na frente tocando no canudo… “ (Os Originais do
Samba*).
Mutatis
mutandis, o silêncio tem
contribuído para a ocultação da ilegalidade. Amedrontada, a sociedade mantém em
segredo fatos que deveriam ser revelados. Inconscientes disto, muitos cidadãos
concorrem para as consequências da violência, do crime organizado e da
corrupção.
Os que comandam o jogo substituem algumas letras da palavra
segredo e passam a SEGREGAR – pondo pessoas à margem dos seus direitos e
deveres. Um apartheid adotado pela minoria esperta a cercear a maioria que paga
os impostos e trabalha.
Tudo isto
seria um mero jogo de palavras se não fosse trágico. Entre quadrados brancos e
pretos do tabuleiro de xadrez da vida, as peças movem-se às cegas num combate
vital, struggle for life.
Os peões
em passos lentos e impedidos de recuar, mesmo na iminência de serem capturados
ou capturados. Uma espécie de terror os anestesia como sapos diante de cobras.
As outras peças aguardam em silêncio, lance após lance, as decisões e
movimentos de uma guerra que não lhes cabe discutir. A mão invisível decide e
todos – torres, cavalos, bispos, reis e rainhas – contemplam, atônitos, o
xeque-mate.
Sou um idealista, um sonhador. Imagino outra partida de xadrez
na qual os adversários rompem o silêncio e discutem os planos entre si e a cada
lance.
No xadrez seria impossível. Mas na vida teríamos uma partida
onde teriam voz e voto ativa cada um dos dezesseis peões, brancos ou pretos,
desdentados ou carecas, mesmo en passant; onde
opinassem retilíneas as torres e com igual valor o parecer em esquadria dos
quatro cavalos.
E que fosse inquirida a deliberação oblíqua e dissimulada dos
bispos; interrogado o entendimento multíplice das desocupadas rainhas e, antes
da derradeira jogada, nos curvássemos ao julgamento salomônico dos reis ‒ a
Arte Real, o suum cuique tribuere.
Nesta hipotética partida, o silêncio seria apenas uma questão de
cortesia. O sagrado, uma questão de caráter. E no final, sem vencedor nem
vencido, as trinta e duas peças seriam recolocadas nos seus justos e perfeitos
lugares.
Porque na
morte, esse nível incomparável do GADU, todos seremos convenientemente
acomodadas numa caixa especial, forrada de veludo azul. Todas, sem distinção ou
segregação. E o samba antigo, fundo musical:
“Quando eu morrer quero ir em fralda de camisa, defunto pobre de
luxo não precisa! Quatro velhas que forem de balão irão segurando nas argolas
do caixão, irão segurando nas argolas do caixão…”
“Vaidade, tudo é vaidade”.
Não foi
isto que aprendemos?
José
Maurício Guimarães
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