A história de Deus foi escrita pelos homens. Mas quem é o autor do livro
mais influente de todos os tempos? As respostas são surpreendentes - e vão
mudar sua maneira de ver as Escrituras
Em algum lugar do
Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa decidiu escrever
um livro. Pegou uma pena,
nanquim e folhas de papiro (uma planta importada do Egito) e começou a contar
uma história mágica,
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão forte,
que virou uma obsessão.
Durante os 1 000
anos seguintes, outras pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e
compilando aquele texto, que viria a se tornar o maior best seller de todos os
tempos: a Bíblia. Ela apresentou
uma teoria para o
surgimento do homem, trouxe os fundamentos do judaísmo e do cristianismo,
influenciou o surgimento do islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os
afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos legou
noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o livre-arbítrio.
Mas quem escreveu,
afinal, o livro mais
importante que a humanidade já viu? Quem era, e o que pensavam essas pessoas?
Como criaram o enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está
na Bíblia deve ser
levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados? A resposta
tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã, o autor
da Bíblia é o próprio
Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a verdade é um pouco mais complexa que
isso.
A própria Igreja admite que a
revelação divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor
é sagrada, mas foi escrita por reles
mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da maioria deles,
a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela não é um simples livro: imagine as
Escrituras como uma biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo,
pela história e pela fé.
Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no
singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros sagrados”.
A tradição
religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito por um autor claramente
identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo Testamento (que no judaísmo se
chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta
Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de
Juízes seria o profeta Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos
estudiosos acredita que os livros sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma
boa explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma terra sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram apenas uma entre muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua cultura e seus escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia de Gilgamesh.
Essa história, protagonizada
pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual
algumas pessoas se salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus textos
sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao mesmo
tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra aberta, com influências de
muitas culturas”, afirma o especialista em história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da
UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e o Êxodo.
Nesses livros, o
tema principal é a relação passional (e às vezes conflituosa) entre Deuse os homens. Só que, logo no começo da
Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do Senhor na história toda. Isso
porque o personagem principal, Deus, é tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria: esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos, escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda. “Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7°). Nessa história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no 6° dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C.,
Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da população foi
aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, os hebreus foram
libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador “esclarecido”,
que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os hebreus retornaram a Canaã – mas
com sua fé transformada. Agora os sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e
diziam que Javé era o único e absoluto deus do Universo. “O monoteísmo pode ter
surgido pelo contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a existência de
um deus bondoso,
Ahura Mazda, em constante combate contra um deus maligno,
Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o Diabo”,
afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do
Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época, um religioso chamado
Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram radicalmente o judaísmo – a
começar por suas escrituras. Eles editaram os livros anteriores e escreveram a
maior parte dos livros Deuteronômio, Números, Levítico e também um dos pontos
altos da Bíblia: os 10
Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás
a Deus acima de todas as
coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras impunha leis
religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre hebreus e
não-hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à ética
moderna dos direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o
maltrates. Ama-o como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados) hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2° em Alexandria, no Egito, grande centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C. Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender suas origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa contando os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.
Continua.
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