A LUZ DA INICIAÇÃO


Os praticantes da antiga arte da alquimia acreditavam que a matéria prima da sua obra sobre a qual deveriam trabalhar, em busca da pedra filosofal, era um depósito de energias desorganizadas. E que no seu interior habitava uma chama divina, que liberta das suas amarras físicas, daria ao seu libertador o controle sobre todas as forças da natureza.

Para eles, era também essa energia, que devidamente organizada, dava a todos os corpos, minerais, vegetais ou animais, suas conformações físicas, fazendo deles um elemento químico, uma planta ou um animal, Essa energia era a essência que nós chamamos de espírito, e esse espírito estava presente em todas as coisas, animadas de inanimadas.[1]

Assim, o espírito, que é pura luz, pura energia, habitava em meio á trevas.

Ao ser libertado precisava ser convenientemente dirigido. Pois assim como os núcleos atômicos de materiais pesados que são rompidos sem medidas de controle podem causar explosões imensas, com danos irreversíveis para o operador e para o ambiente, também o espírito liberado sem direcionamento, sem “magistério” próprio, pode causar terríveis perturbações.

Por isso toda disciplina espiritual precisava de uma iniciação, um mestre e um adequado ritual de transmissão desse magistério, para que ela pudesse ser conduzida de com segurança, de forma a produzir a iluminação pretendida pelo iniciado e não o  descalabro da sua consciência. Pois como dizia o iniciado Rabelais, “ciência sem consciência é apenas ruína da alma”.[2]

Maçonaria e alquimia são ramos da mesma árvore filosófica, que também produziu o movimento rosacruciano e uma grande parte do pensamento místico que influencia grande número de intelectuais em nossos dias.

Nessa árvore também encontraremos, por exemplo, o Espiritismo, a Teosofia, o Hilozoísmo e outras grandes correntes do pensamento moderno, que procuram estudar o complexo matéria-espirito, para fins entender adequadamente o universo e a vida que nele habita.[3]

Como prática corporativa, a alquimia é mais antiga que a maçonaria. Ela nasceu nos antigos templos do Egito, como arte sagrada, praticada pelos sacerdotes egípcios para a confecção de objetos dourados.

Na maçonaria ela entrou pelas mãos dos “maçons aceitos” do grupo rosacruciano, ali pelo início do século XVII. Logo ganhou adeptos em todas as Lojas Especulativas, provavelmente pela analogia que as tradições alquímicas guardavam com a prática dos maçons operativos, que buscavam o aprimoramento do espírito através do trabalho manual.

Para os alquimistas, o processo de manipulação da matéria prima nos laboratórios promovia no espírito do operador a mesma transmutação espiritual que o trabalho do construtor de edifícios sacros realizava.

Ambas eram práticas sacralizadas, que levavam ao êxtase espiritual aqueles que nelas eram iniciados. O arquiteto-construtor quando terminava o seu edifício sacro, o alquimista quando conseguia obter a pedra filosofal obtinham a “iluminação”.

Assim, a esperança alquímica de revelação divina, através da manipulação da matéria, estava no mesmo nível da esperança maçônica, sonhada pelos antigos maçons operativos. O que se buscava, em ambas as práticas, era a obtenção da Gnose, ou seja, o supremo conhecimento dos segredos da natureza, através do qual o homem se integrava á divindade, recuperando a condição perdida em razão da sua queda.[4]

Tanto a antiga maçonaria quanto a alquimia eram práticas operativas. Ambas envolviam o trabalho das mãos e a disciplina do espírito. Ao se fundirem, no início do século XVII, por iniciativa dos pensadores rosacrucianos, ela se tornou uma prática espiritualista laica, que integrou em seu corpo doutrinário outras tradições antigas que a intelectualidade da época se recusava a abandonar, tais como a ritualística da Cavalaria e os benefícios do sistema corporativo das guildas medievais, por exemplo.

Que os pressupostos da prática alquímica e da maçonaria operativa fossem associadas a uma disciplina espiritual, visando o mesmo resultado, não causa nenhuma perplexidade. Afinal, o que pregavam as crenças religiosas e as tradições iniciáticas de todos os tempos, senão a ideia de que o espírito humano é uma essência que deve ser expurgada de todas as impurezas, para tornar-se uma entidade “luminosa”, limpa, pura, capaz de alçar-se ao território das divindades e com elas conviver num nível de igualdade? E não era essa também a finalidade da religião, a meta da filosofia, a esperança gnóstica e a realização derradeira de toda experiência mística?

Por essa e por outras razões, tanto a alquimia quanto a maçonaria das Lojas especulativas sempre provocaram a desconfiança da Igreja.

Conquanto nenhuma das duas tradições jamais tivesse reivindicado status de disciplina religiosa, como as diversas seitas que incomodaram a Igreja ao longo da História, seus adeptos desafiavam o monopólio da religião de Roma como único caminho para a iluminação do espírito.

Isso porque o alquimista, tanto quanto o arquiteto e o pedreiro-livre, construtor das grandes catedrais medievais, era considerado um “eleito dos deuses”, um homem cuja consciência foi desperta pelo ingresso nos segredos mais íntimos da natureza.

Assim como os grandes mestres do conhecimento arcano ele possuía a Gnose, a verdadeira sabedoria que tudo transformava, coisa que a Igreja admitia somente aquele que comungasse da “União em Cristo” que só ela proporcionava.

Com o desenvolvimento das técnicas modernas de pesquisa científica e o desenvolvimento da arquitetura moderna, as práticas operativas da alquimia e da arquitetura antiga caíram em desuso. Mas não o espírito que as amparava.

Por analogia, toda a simbologia que se aplicava ao alquimista e ao maçom operativo foi transferida para os Irmãos das Lojas especulativas, homens regenerados pela iniciação, possuidores de uma consciência superior, que lhes permite “ver” e agir num domínio ampliado pela visão interior que a prática da Arte Real lhe promete.

Não é sem motivo que muitos autores sustentam que o objetivo da moderna maçonaria é a realização de uma obra espiritual comparável á grande obra dos alquimistas, representada pela pedra filosofal.

Não é também irracional a comparação que se faz entre a construção simbólica do Templo de Salomão e a obtenção dessa “pedra”, capaz de transformar minerais impuros no mais puro ouro.

E não é também por acaso que a iniciação maçônica, e o seu próprio catecismo, são pródigos de evocações a símbolos alquímicos.

E tanto se pode dizer que a maçonaria moderna é uma espécie de Cavalaria simbólica, quanto uma forma de alquimia praticada simbolicamente em uma Loja, ao invés de um laboratório, tendo como matéria prima o psiquismo do praticante, e como finalidade a transmutação do próprio operador.

Bernard Rogers resume bem essa questão: “O objetivo que os franco-maçons perseguiam é a construção do Homem, isto é, da Humanidade Autêntica, concebida como projeto, a partir da construção do individuo”, escreve aquele autor.

“Não causará surpresa”, prossegue ele, “o fato de que o eixo em torno do qual eles estabeleceram seu simbolismo seja a construção do Templo de Salomão, sendo o ser humano considerado como a morada da divindade.

A quem venha opor esse propósito a afirmação de que há franco-maçons ateus, respondamos que nenhum desses, a menos que não mereça sua qualificação, poderia pelo menos negar sua fé na perfectibilidade do homem, cuja natureza divina- isto é- luminosa- não pode deixar de ser reconhecida por quem não tem medo das palavras e se recusa a tornar-se escravo do que esta ou aquela religião possa exigir dele”. [5]

Por acaso também não é que a disposição dos símbolos, numa Loja maçônica, assemelha-se, de forma notável, à quarta prancha do Mutus Líber dos alquimistas.

É que ambas são visões simbólicas do universo. Nelas se representa a “energia dos princípios”, responsável pelas transformações internas e externas que se realizam na natureza e no homem. É também no interior de uma Loja que a mística da Palavra Perdida, o Verbo Divino, o Número Único, que na Cabala hermética representa o Principio Criador de todas as coisas, e na alquimia a ” flos coeli “,“o dom de Deus”, é captada pela alma humana no momento da iniciação.

É essa energia que age, á medida que a cerimônia avança, para a realização da transmutação do neófito, conferindo-lhe um status que o eleva de sua condição anterior de profano á condição superior de iniciado.[6]

Assim, a analogia entre o magistério alquímico e a prática maçônica se completa com a visão de que há uma perfeita similitude nos objetivos de ambas as tradições. 

Pois da  mesma forma que na prática alquímica o “metal” se regenera a partir de uma conjunção entre a luz e as trevas, na maçonaria essa regeneração é operada a partir do sol e da lua.

Estes astros estão representados no Oriente da Loja, atrás do trono do Venerável Mestre. É da luz que vem do Oriente, a partir da consagração dada pelo Venerável, que o iniciado atinge a qualidade de homem renascido, após ter sofrido a morte psíquica, simbolizada por sua passagem pelos subterrâneos e sua descida ao ventre da terra.

Após ter passado um período perdido nas trevas, realizando diversas provas e viagens, o neófito “vê” a luz, no momento em que lhe são retiradas as vendas dos olhos. Momento singular de sua iniciação, o recipiendário percebe que essa luz lhe é projeta pelo reflexo dos astros ali representados, simbolizando que ele, finalmente, superou a primeira fase de sua jornada iniciática e sabe agora da existência de uma verdade maior que precisará ser descoberta.

Aqui, mais uma vez, a correspondência entre a “iluminação” maçônica e o despertar da consciência do operador alquímico é evidente: o Aprendiz maçom, que durante longo tempo permaneceu num estado de semente, lançada num profundo negro, evolui para o branco da regeneração, quando se torna Companheiro e conhece o vermelho da ressurreição ao tornar-se Mestre.

O Mestre que renasce a partir de Hiram morto, eis o apogeu do processo que simboliza o nascimento de um maçom na sua plenitude iniciática, pois ao iniciar-se 

Aprendiz, e ao elevar-se a Companheiro, ele ainda está em processo de gestação.

Como na prática alquímica será preciso um longo processo de manipulação e aprimoramento do seu caráter até que ele se torne, enfim, o Homem Universal, alicerce da nova sociedade, justa e perfeita, que a maçonaria se propõe construir.

Essa é a alquimia que se processa no interior de uma Loja Maçônica, que nesse mister repete o trabalho feito no laboratório do Adepto.

Por isso é que se diz que aqueles temerários que batem profanamente á porta do templo, a fim de se iniciarem nos Augustos Mistérios dos Obreiros da Arte Real, ali estão em busca de luz.

É que na desordem que reina no mundo dos homens, esses corações sensíveis sentem a necessidade de buscar o exato equilíbrio entre suas necessidades no mundo profano e as exigências do mundo sagrado, que são de cunho espiritual.

Sem ordem e harmonia em suas próprias vidas, não as pode transmitir á comunidade em que vive, pois ele mesmo não as possui. Mas como o metal da obra alquímica e o próprio caráter do operador, ambos precisam ser purificados.

Ontem como hoje, as esperanças da humanidade são as mesmas: ela quer viver num estado de harmonia, equilíbrio social e ordem. Se as formas de se buscar esse estado ideal mudam, e as visões assumem diferentes configurações, o conteúdo significante dessas visões, no entanto, são os mesmos.

Em todos os tempos os homens repetem as mesmas fórmulas e sentem os mesmos anseios. Assim, o neófito que busca a realização maçônica carrega na sua alma o mesmo anseio do Adepto que se iniciava na Arte de Hermes.

E tanto nos laboratórios dos artistas da Obra, como nos templos maçônicos de hoje, quando um Irmão é iniciado ouve-se dizer que A LUZ FOI FEITA , A LUZ SEJA DADA AO NEÓFITO.

Assim nasciam os Adeptos, assim nasce um Maçom.

Por Ir.'. João Anatalino

[1] Aristóteles chamava essa energia primordial de enteléquia, ou seja, o principio fundamental que está na origem de todos os seres, animados ou inanimados.
 [2] Francóis Rabelais- Aventuras de Gargantua e Pantagruel, Ed. 1960.
 [3] Hilozoísmo -do grego hyle, matéria, e zoe, vida- é um termo da filosofia grega anterior á Aristóteles (os chamados pré-socráticos) que atribui sensibilidade á todos os seres da natureza, inclusive a matéria inerte. Em outros termos, o hilozoísmo considera o próprio universo um ser vivo.
 [4] Referência ao episódio bíblico da expulsão do paraíso, aqui entendido como sendo a aquisição do conhecimento á revelia do Criador, como os gnósticos acreditavam.
 [5] Descobrindo a Alquimia- Ed Círculo do Livro, 1986
 [6] Mutus Liber, o Livro Mudo, é uma coleção de quinze desenhos mostrando, alegoricamente, todas as fases do processo alquímico. De autor ignorado, é considerado a “Bíblia dos alquimistas”.


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